Ele acordou, doente e sob coriza do resfriado que o abateu pela imunidade baixa. “Não se estresse”, pensou. Mas já era tarde. “Então não chore, ao menos…” falou a si mesmo, sabendo que viver num mundo sem controle era se sujeitar às doenças, à falta de sentido e ao niilismo profundo. Aquele niilismo que nos abate como resultado do peso das escolhas difíceis, das tentativas de dar sentido ao que não possui nenhum sentido inerente.
“Para quê arrumar a cama se irei bagunçá-la daqui a pouco?”, pensou a alma que atingiu os trinta anos com um experiência anciã. E essa lógica razoável acompanhou o raciocínio sobre a vida: “para que irei viver se daqui a pouco deixarei de existir para todo o sempre?”
Viver era um hábito e por esse motivo ele “arrumou a cama” que era a sua vida. Era uma mente talentosa e muito hábil, talvez por esse motivo estava com aqueles pensamentos típicos de quem vive na escuridão da profundidade reflexiva. Vida após a morte? Para ele era uma tentativa de negar a loucura da existência.
“Eu nasci por obra do acaso da vida em um planeta de uma galáxia entre trilhões de outras… após bilhões de anos. E irei morrer e deixar de existir por muitos outros bilhões de anos. Até mesmo o tempo deixará de existir depois de ‘um tempo’...” e ao pensar nessa ironia complexamente trágica, deu gargalhadas de loucura.
Ele era um sujeito de lua; socializava apenas quando desejava, nos ambientes que frequentava. Sempre tinha críticas ácidas, mas proferia apenas a minoria delas para os ouvintes. Era conhecido por oscilações de humor ao irromper em empolgação algumas raras vezes, mas tipicamente era quieto na maioria dos dias. Eram tempos difíceis para aquela criatura ensimesmada em si e pouco altruísta. Ele se fechava como uma tartaruga que se põe para dentro do casco após constatar algum pseudovestígio de perigo.
“Somos feitos de colônias de bactérias e muitas interferem no nosso humor, principalmente as do intestino. Nossa consciência, chamada ingenuamente de Eu, é apenas uma consequência de muitas formas de vida microscópicas que nos habitam. Existem inúmeros sistemas sincronizados em nós e somos apenas uma extensão do cérebro. Não existe um Eu, nem um software que chamamos de alma ou espírito…” pensou enquanto estava rodeado de pessoas em uma fila qualquer, em um lugar comum e desprezível.
Essas verdades são duras demais para qualquer ser humano digerir quando se pensa sériamente nelas. Elas devem ser evitadas pela maioria e são tratadas de forma esquiva pelo homem prático, pragmático e que sobrevive pelas fantasias metafísicas. Então, uma grande campanha inconscientemente suicida se abateu sobre aquela personalidade retraída que de forma inconsciente estava cansada de temer a morte e resolveu encará-la. Ele se tornou adepto de esportes radicais, estilos de vida agitados que trouxessem riscos. Ele se dedicou ao skydiving, mergulho livre, base jumping, surf em grandes ondas do Havai e Parkour.
Desafiar a morte e encará-la como parte do cotidiano, sem vê-la como uma indesejável das gentes, era seu objetivo. Era isso um grito de liberdade? Uma tentativa de sair do niilismo profundo e da desvalorização da vida? Ele sabia racionalizar paixões profundas e por isso mal se permitia vivenciar medos. Talvez por isso se aventurou nas loucuras de esportes de ação. Havia começado em sua vida uma era de autoconhecimento forçado, instintivo, prático. Então esse antigo homem teórico que ficou conhecido por não temer a morte, nem a falta de sentido dela, se tornou mais prático e concreto.
Ele se aproximou de sua natureza animalesca como qualquer outro animal do planeta Terra. Houve redenção neste homo sapiens através da volta à sua natureza primitiva. O pecado original, conhecido pela extrema racionalização e abstração do pensamento, caiu por terra quando a vida foi encarada fora do espectro teleológico. Então em um dia segundoso e chuvoso, após acordar de ressaca, ele arrumou sua cama sem pensar em qual seria o sentido disso. Esse foi o sinal de que sua doença antinatural e abstrata, entrou em remissão!
-Gabriel Meiller