quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

A angústia ao ler Modernidade Líquida

 

Há uma corrosão emocional que vem me assolando conforme eu rumino os apontamentos assertivamente cortantes de Bauman. Posso definitivamente dizer que "Antes eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora os meus olhos te lêem", parafraseando Jó. Mas ler Bauman sem me envolver profundamente com a modernidade que me cerca é impossível. Ainda mais com a profundidade que sempre me foi característica em minhas investigações. Modernidade Líquida escancara de forma cíclica e cada vez mais profunda a cada capítulo o motivo de sermos tão solitários, inseguros e cansados psicológicamente. Bauman entende que a estrutura de um capitalismo global e flexível em que tudo está em constante transformação, também nos transformou em moribundos sem identidade estável. As comunidades sólidas de antigamente que se baseavam em laços profundos e que duravam por toda a vida, sofreram a liquefação (se tornaram líquidas e temporárias como a roupa do dia em que vestimos). A estabilidade de um emprego em que possamos fazer carreira sem nos preocupar com a demissão e o corte de gastos, virou um sonho de concurso público. As relações que duravam décadas, hoje são sentenciadas a morrer quando o cônjuge (visto como um produto a ser consumido até a satisfação do outro desvanecer) se exaurir da novidade da relação. Um grande "até que  o fim do desejo nos separe; até que um novo desejo mais selvagem nos separe de vez." A novidade ganhou um prestígio ilimitado e o tédio causado pela espera foi abolido; a procrastinação que antes tinha um objetivo de adiar os planos para que fossem melhor consolidados no futuro, virou um adiamento infinito em detrimento do consumo de pequenos prazeres imediatos anestesiantes que nunca satisfazem quem os consomem. Mas essa lógica de cassino é feita para ser assim: nem muito prazer para não satisfazer completamente o moribundo sem identidade e o encorajar a não voltar tão cedo; nem tão pouco para que ele desanime da busca e desista de voltar. 


Toda essa constante mudança, estímulos rasos e procura crônica por autoafirmação da nossa identidade individual é uma alienação da modernidade líquida. Uma corrida dos ratos que ninguém escapa; os grupos atuais se sustentam pelo desejo do indivíduo de estar neles e de sair quando for conveniente. Mais perverso do que isso, o grupo funciona por uma lógica de ódio ao diferente:  a esquerda que odeia a direita e a cancela; a direita que considera a esquerda como um bando de autoritários do politicamente correto e os abomina veementemente. A união do grupo é pelo ressentimento; o ressentimento nos atravessa quando enxergamos pessoas que conquistam o que sempre sonhamos e não conseguimos, muitas vezes pela aura do socialismo e do ódio à conquista meritocrática do outro ou mesmo pela herança herdada; a irritação nos assola quando escolhemos algo e depois vemos que havia outra coisa muito melhor como opção. 


Estamos todos presos em uma lógica do consumo como consequência de uma condição volátil que determina a nossa identidade. Consumimos pessoas em relações; vestimos uma skin identitária em grupos que depois é removível; veneramos a frágil reafirmação da nossa autoestima em likes de Facebook e Instagram.  Esta é uma parte perceptível da modernidade líquida: a constatação de que o fato de nos prendermos a algo estável é uma tremenda loucura, sendo que na próxima quadra terá algo melhor. A preferência pela velocidade que faz os dias correrem velozmente sem fim, correndo atrás do futuro redentor é o grande surto coletivo venerado. Somos carentes de novidade, pois o antigo causa repulsa no indivíduo moderno, isto é, o indivíduo que acredita que o fututo será sempre melhor.  Somos crentes do progresso constante do futuro e não nos tocamos que isso é ardilosamente mendaz. 


Ainda por cima: vivemos uma era de niilismo profundo que se travestiu de plenitude; não estou falando do niilismo cristão, que já perdeu a sua força de sedução e hoje é um moribundo que tenta arrebanhar os que possuem medo do mundo e da vida.  Falo de um niilismo cem vezes mais potente:  o mundo paralelo da inovação compulsória e da exposição constante nas redes sociais como uma subversão da vida no aqui e no agora. 


E não há uma solução, pois o indivíduo não é capaz de combater uma superestrutura coletiva global que saiu do controle do Estado-nação. O que importa é o emaranhado internacional e não a vontade local. Somos como o feiticeiro que lançou um feitiço e perdeu o controle sobre ele; o feitiço é a vida própria do capital que é soberano sobre o todo. O capital hoje é líquido,  instantâneo e imprevisível; sem as parnafenalhas de edifícios industriais que o prendem ao chão e o tornam controlável. Hoje o capital é digital e impegável; não há uma mesa de controle, o comando não é concentrado, mas está em todo lugar e, por isso, em lugar nenhum para ser domado! 


-Gabriel Meiller