quarta-feira, 15 de maio de 2024

A metamorfose do camelo em "Assim Falou Zaratustra"

 

No primeiro discurso de Zaratustra, após ele perceber que sua missão não era falar às multidões , mas sim agir como um lobo desgarrado que afasta do rebanho as ovelhas oprimidas pela moral de rebanho, ele menciona sobre as três metamorfoses do espírito humano. Os arquétipos são em sequência: camelo; leão; e a criança! 


O discurso de Nietzsche nesse livro ficcional, por meio de sua personificação zaratustriana, tenta encarnar todos os seus principais conceitos já explanados anteriormente, principalmente o conceito do Übermensch (além-homem ou super-homem). E seu primeiro discurso retrata a trajetória na qual o espírito humano terá que  percorrer até alcançar esse ideal nietzschiano. O primeiro estágio a ser superado para que o Super-homem possa emergir é o estado pesado e moralista da humanidade: o camelo. 


O camelo é descrito como  a representação de um espírito forte pelo fato de suportar as pesadas cargas e ainda carregá-las com reverência. Que cargas são essas? São as tradições humanas, ideologias, dogmas e toda obrigação representada pelo imperativo categórico kantiano no qual Nietzsche se opunha severamente: o "tu deves!". O dever, a obrigação em demasia é um aspecto que sufoca o ser humano e o priva de chegar ao estágio criador por excelência. Quem é criativo? Quem não segue padrões a todo momento; é necessário ser transgressor para ser criador (papel que começa no leão e se realiza na criança), porém, o camelo não quer ser criador, e sim um imitador! 


O camelo pode ser representado pelos moralistas, pelos "responsáveis", pelos disciplinados e workaholics que amam o dever e o colocam acima da diversão e do descanso. "Descansa, militante!" diria Nietzsche nos dias atuais. Seja este um militante cristão, seja um militante de esquerda que carrega em seus ombros (como o camelo) o peso do mundo e daqueles que sofreram as injustiças. 


Jesus, o sofredor, é o camelo por excelência. Ele carregou, na mitologia cristã, os pecados de todo o mundo diante de seu pai celeste. Mas, se Jesus era Deus, segundo essa mitologia, a diferença deste personagem para nós... é insuperável. É por esse motivo que a compaixão, um forte ideal cristão, é um desmonte à vontade de viver. A compaixão se ocupa da miséria do outro e o trata como um incapaz. O excesso de compaixão e piedade, somados à caridade compulsória... são venenos que a cultura cristã (aspirante à miséria) nos relega.


O camelo, de outras formas, pode estar em muitas intenções e sistemas humanos. O camelo está no árduo esforço que um funcionário faz para que a sua empresa enriqueça e os filhos de seu patrão gozem de férias na Disney. O camelo está presente no executivo que sai de casa para fazer dinheiro e ganhar o mundo, mas adoece de tanto trabalhar e deixa sua família ao desprezo. 


O camelo também é o moralista cristão que se orgulha em carregar pesos pesados, como o sacrifício e a mutilação de si ao renunciar o mundo real em troca de um suposto mundo vindouro. Ele não fuma, não bebe, não transa antes do casamento, não ouve outros estilos musicais a não ser o gospel... e ele ama se sentir honrado por este peso que o esmaga. Ele ainda pede mais para se sentir digno o suficiente diante de todos. 


O camelo é o frequentador religioso das academias que submete seu corpo a uma maratona incansável para ser admirado por sua estética e músculos; é o cientista e o filósofo que se orgulha em se encher da "erva do conhecimento" e ser reconhecido como sábio e intelectual. O camelo é nosso orgulho clamando por reconhecimento através do sadomazoquismo desenfreado que nos assola. Ele pode ser o superego freudiano que em excesso nos quebra existencialmente ao suprimir toda nossa criatividade e vontade de viver. 


Esta é a nossa dimensão interna chamada: camelo! 


-Gabriel Meiller 


sexta-feira, 19 de abril de 2024

Acolhendo o lado negro: para ser grande, sê inteiro!



Sim,  às vezes eu sou escroto e pau no cu mesmo!  Exatamente: às vezes eu invejo os outros pelos seus pontos fortes e privilegiados. Sim, eu também já trai alguém e fui machista, homofóbico, racista e insensível! No final das contas somos todos impoliticamente incorretos e escrotos e está tudo bem, sim! 


 A culpa cristã somada  à militância política de esquerda (ou direita)fez do nosso moralismo uma caverna que nos distancia do mundo em uma grande hipocrisia! 


Condenamos a nós mesmos e ao outro de forma voraz. Até que ponto isso faz bem? Até que ponto a culpa cultural cristã e seu controle rígido é algo bom? Ser gentil consigo mesmo não significa ser um fascista ou sociopata despreocupado com o mundo, mas é o começo do amor próprio. O amor próprio deve ser por inteiro, sem condicionantes e livre da busca incessante para nos tornarmos um cristal lapidado!  Aceitarmos a nós mesmos com nossas falhas é o princípio de uma vida menos doentia e menos corroída pela culpa e pela cobrança excessiva. 


Vejam bem, meus caros, o mundo é assolado por uma epidemia grave: a epidemia do autoaperfeiçoamento sem limites, isto é, a síndrome do cristal lapidado! 


E sim... eu continuarei sendo pau no cu, egoísta, invejoso e mais outros adjetivos negativos, bem como os positivos.  E continuarei me aceitando e convivendo com meu lado negro. E, sim: irei usar a expressão "negro" independente dos protestos da galera do letramento racial, eles que lutem!  Já dizia o poeta: "Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui." E sabem o que eu descobri?  Que eu sou exagerado e dramático por natureza, essa é a minha personalidade na qual muitos reconhecem e que tem características que resvalam no "lado negro" e "lado luminoso".  Sem o meu drama, a minha vida seria uma exclusão, uma cisão e eliminação da minha forma de me expressar !   


Não é possível amputar de nós o nosso lado negro sem também eliminar o lado solar, nobre e alegre! Até quando iremos amputar nossa personalidade e esconder nossos defeitos por causa do julgamento alheio?  Se pudermos mudar, que mudemos; mas se não pudermos... que possamos ter a nossa própria compreensão incondicional em primeiro lugar e depois a compreensão alheia que sempre será condicional! 


-Gabriel Meiller

quarta-feira, 17 de abril de 2024

A maravilhosa expansão de consciência



Umas das coisas, senão a maior das coisas, das quais eu considero o motivo pelo qual se vale a pena viver, é a expansão de consciência. O ser humano deixou de ser um macaco pré-histórico para ser um macaco diferenciado dos demais, principalmente quando fomos capazes de dominar o nosso meio pela expansão da consciência. O homem aprendeu a falar e se comunicar pelos idiomas, escrita e se organizar de forma complexa como sociedade. As grandes obras arquitetônicas, a invenção da roda e do comércio, o nascimento de impérios e a construção de potentes máquinas, como as da revolução industrial... fizeram de nós deuses criadores! 


O que caracteriza um deus? A criação. E a criação só é possível por meio da expansão de consciência. Essa expansão ocorre por meio das interações com o meio e pelo aprendizado que envolve desconstruir e reconstruir antigas visões do senso comum.  Minha principal forma de expandir a consciência ocorre pelo amor ao conhecimento e pela coragem em enfrentar o desconhecido para fugir do que é conhecido. Um ponto principal da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é mostrar que a família de Fabiano se depara com uma tragédia atrás da outra por causa de sua ignorância. O que é a ignorância senão fechar os olhos para a expansão de consciência e para o desconhecido?


A ignorância, portanto, é a mãe de todas as tragédias. Ao cursar nutrição, aquela velha sensação  me veio à tona novamente: a de que estou sendo libertado da ignorância e desta vez na área alimentar. Eu estava refém do senso comum e dos conhecimentos que precisavam de aperfeiçoamentos sobre a saúde e uma boa alimentação.  Em todas as áreas, porém, o conhecimento atua como agente salvador daquele que é ignorante, ao promover tal expansão de consciência.  A expansão, porém, possui um custo que para alguns pode ser oneroso demais:  a implicação de mudança e saída da zona de conforto. 


-Gabriel Meiller

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Aceitando a dualidade

 

A ânsia em maximizar a alegria e evitar a tristeza é a verdadeira desgraça do ocidente. "Não crie expectativas, não se apegue tanto, não fique triste..." são frases comuns e que possuem o objetivo de separar a alegria da tristeza. Isso é absurdo! 


A beleza de aceitar as emoções e todos os polos da dualidade é ser inteiro. "Para ser grande, sê inteiro" disse o poeta Fernando Pessoa.  E ser inteiro significa aceitar cada parte de nós: as partes sombrias e as solares; os sentimentos bons e ruins, o bem e o mal que anda à nossa espreita. 


Covardia maior seria fugir do que nos incomoda e aceitar somente as alegrias. As alegrias não são alegrias sem o parâmetro das tristezas para nos ajudar a avaliar o que é bom. O bom, além de subjetivo, é inexistente sem o ruim. Só existe conhecimento se houver a comparação entre as partes que formam o todo.


É razoável abraçar a tristeza, assim como a alegria porque a dor é tão próxima do prazer... como cantou Freddie Mercury. 


-Gabriel Meiller 




quarta-feira, 3 de abril de 2024

Mortes, rupturas e renascimentos

    



Depois da grande tragédia raiou a esperança como o sol inesperado que surge por de trás da nuvem negra. O caminho da cura muitas vezes é a doença, bem como o consumo que a chaga traz ao seu refém.  Os limites que são cruzados se revelam como novas linhas de partida; limites devem ser cruzados, mas o cruzamento deles pode nos levar à quase loucura. Entretanto, quando conseguimos sair do turbilhão da nuvem negra em que estávamos envolvidos, nós renascemos no sol como fênix. 


Um homem/mulher não é definido pelo que é... mas pela capacidade de ser diversas novas versões de si mesmo(a). Sim, a possibilidade de ser é muito valiosa; o tolo se apega sempre ao que foi e se prende no passado. Mas aquele que está disposto a encarar o abismo e receber dele uma encarada maior (e o abismo é sua vida interna), se torna a verdadeira fênix.  


Eu já morri diversas vezes nessa vida. A grande primeira ruptura e morte foi quando eu decidi abandonar toda uma criação religiosa que me aprisionava e me alienava do mundo. Quem vê minha admiração por Nietzsche sabe do que estou falando. Essa morte para a crença em ideais religiosos e metafísicos foi a que mais me deu vida e vida em abundância. Mas sabem de uma coisa? Volte e meia substituímos nossos antigos ídolos por novos... e sempre será assim. Então me aprisionei novamente na ilusão de que uma pessoa poderia me fazer completo e toda aquela ladainha do amor romântico. Mais uma vez me tornei prisioneiro das minhas emoções que, no ímpeto da juventude, não repousaram até que eu me desfigurasse pela exaustão de fazer uma relação falida dar certo. 


Percebi, após o ocorrido de 4 anos, que o problema estava não somente em mim e na pessoa. Estava também na estrutura com a qual aprendemos a amar românticamente alguém.  Em relações desse tipo o exclusivismo emocional cerca o casal e o sufoca!


Amorosamente falando, esse (des)afeto só pode ser direcionado ao cônjuge e a mais ninguém. O sexo também só pode ocorrer com o escolhido(a) e mais ninguém. O que isso significa senão comer batata frita todos os dias até vomitar? Aí estava o problema para mim! Eu não sou daqueles que se contenta em comer batatas fritas todos os dias; eu gosto de comer um bife a parmegiana em um dia; uma lasanha em outro; um purê com carne moída em outro dia e por aí vai. Então, assim como a religião me trouxe dor de cabeça e eu decidi romper com isso... o amor romântico (uma quase religião) me deu outra dor de cabeça terrível e também decidi romper com ele. 


Agora, após outra morte e renascimento... eu quero ser um espírito livre. Daqueles que vai aonde o vento lhe impelir, navegando os setes mares e vivendo a vida como bem entender e desejar. São rupturas minhas e de mais ninguém ou apenas aos que enxergam a vida de forma semelhante.


-Gabriel Meiller 

terça-feira, 2 de abril de 2024

O brincar alegre

  A vida é o brincar alegre dos espíritos humanos: a cada momento em ser algo diferente. Eles se servem de ideologias, dogmas ou qualquer outro acervo teórico para que leiam o manual da brincadeira. Alguns se perdem no manual e deixam de brincar, já outros esquecem até das regras fundamentais do jogo. Que importa? Vale a diversão, valem as explorações pelo mundão em céu aberto. Vale, desta forma, o ir sendo a cada momento uma diferente versão de si mesmo a cada dia, a cada ano, a cada época! 


"Para ser grande, sê inteiro", disse o poeta. E acrescentou: "Nada teu exagera ou exclui".


-Gabriel Meiller 


domingo, 31 de março de 2024

Vamos falar sobre afetos



Afetos são inclinações que fazemos (aos) ou recebemos  dos outros. Afeto vem da palavra latina "affectus" que significa "disposição, estar inclinado a algo..." e affectus vem de "afficere" que significa afetar, fazer algo a alguém.  Pensando a dinâmica dos afetos nas relações, estamos sempre inclinados a fazer algo a alguém, ou alguém sempre está inclinado a algo para conosco. 


O que é a relação senão um jogo complexo de afetos que envolve a todos que nos rodeiam? Somos afetados, mesmo quando fingimos que somos indiferentes, pois a indiferença é o fim de um afeto... seja bom, seja ruim. Somos afetados! E sair dos afetos é a indiferença que anseia o isolamento desse jogo de afetividades. Desejamos geralmente as "afestividades", isto é, os afetos bons, que lembram "festas". Mas a vida é um festival de afetividades em que não podemos escolher o "à la carte" em que só os "bons" afetos são escolhidos. 


Os afetos são neutros... nós é que sentimos eles como bons ou ruins e decidimos agir em reação a esses estímulos.  É por esse  motivo que o ódio é um amor em sentido contrário, querendo reivindicar algo; e por esse motivo que a indiferença é a desfeita do amor e do ódio. A indiferença é o caminho para fora dos afetos por causa de afetos ruins do indivíduo que está cansado. Ele deseja a solitude e a recuperação. 


Mas e se quisermos falar sobre afetos em relações amorosas? São essas relações que reivindicam a maior e também a mais cobrada "afestividade". "Relação" virou sinônimo de "relação amorosa" assim como "Gillete"  é o sinônimo de lâmina de barbear. Esse reducionismo, essa violência etimológica transparece que a relação verdadeira é somente a relação amorosa para grande parte do senso comum. Explorar os meandros das relações amorosas e monogâmicas se revela um terreno pedregoso a ser percorrido pelo fato da maioria das pessoas sofrerem pela possibilidade de compartilhar afetos exclusivos dessa relação que possuem com seu cônjuge. A ideia de dividir pessoas é absurda ao nosso imaginário... e então nosso desejo de rotular o outro como nosso namorado(a) é uma segurança emocional para que pensemos que ele(a) é nosso e não poderá nos deixar ou nos trocar.


 Com isso, estamos alimentando a ilusão de estabilidade e segurança que um rótulo nos oferece.  E se nos relacionássemos com pessoas sem rotulá-las em amizade, namoro ou algum outro gênero de seccionamento de afetos? Para a grande maioria isso seria um tremendo caos, bem como para a jurisdição brasileira. 


Um amor livre, sem rótulos... provoca um tremendo afeto na sociedade: o sentimento de surpresa e desorientação.  A sociedade não está preparada para relações sem rótulos justamente porque se construiu em cima da posse do outro! "Ele é meu! Ela é minha! Eles são meus!"  Mas a ilusão de segurança do pronome possessivo também gera problemas por causa dessa energia de querer controlar o outro em diferentes escalas. As escalas mais comuns são dos maridos possessivos que não deixam a mulher sair com amigas ou nem mesmo sozinha. Todos nós já sabemos do óbvio. Mas e as situações menos óbvias e mais inusitadas e que também podem nos estressar? 


A grande questão não é ser monogâmico, poligâmico ou sem rótulos nas relações humanas. A grande questão é como nos sentimos ao nos anularmos pelo sentimento de posse e de controle sobre o outro; ou por causa do controle que o outro exerce sobre nós.  Há pessoas que certamente amam a monogamia e vivem tranquilas e reagem bem a esse sistema de posses.  Mas e aquelas que se sentiram peças fora de um quebra cabeça monogâmico? O sistema naturalmente nos ensina a seccionar afetos e enquadrar cada um em uma caixinha.  Mas e os rebeldes,  aqueles que não querem esmagar seus desejos e inclinações que não se encaixam no grande status quo? Esses sofrem e se culpam por não se encaixarem na estrutura. 


Mas esses aprendem, mais cedo ou mais tarde, que: se a estrutura quebrou eles... eles quebram a estrutura! E vivem como bem entendem dentro de suas perspectivas como espíritos livres. Essa é a oração daqueles que são fiéis a si mesmos e aguentam o "peso" da liberdade de serem de si mesmos! 


-Gabriel Meiller