No primeiro discurso de Zaratustra, após ele perceber que sua missão não era falar às multidões , mas sim agir como um lobo desgarrado que afasta do rebanho as ovelhas oprimidas pela moral de rebanho, ele menciona sobre as três metamorfoses do espírito humano. Os arquétipos são em sequência: camelo; leão; e a criança!
O discurso de Nietzsche nesse livro ficcional, por meio de sua personificação zaratustriana, tenta encarnar todos os seus principais conceitos já explanados anteriormente, principalmente o conceito do Übermensch (além-homem ou super-homem). E seu primeiro discurso retrata a trajetória na qual o espírito humano terá que percorrer até alcançar esse ideal nietzschiano. O primeiro estágio a ser superado para que o Super-homem possa emergir é o estado pesado e moralista da humanidade: o camelo.
O camelo é descrito como a representação de um espírito forte pelo fato de suportar as pesadas cargas e ainda carregá-las com reverência. Que cargas são essas? São as tradições humanas, ideologias, dogmas e toda obrigação representada pelo imperativo categórico kantiano no qual Nietzsche se opunha severamente: o "tu deves!". O dever, a obrigação em demasia é um aspecto que sufoca o ser humano e o priva de chegar ao estágio criador por excelência. Quem é criativo? Quem não segue padrões a todo momento; é necessário ser transgressor para ser criador (papel que começa no leão e se realiza na criança), porém, o camelo não quer ser criador, e sim um imitador!
O camelo pode ser representado pelos moralistas, pelos "responsáveis", pelos disciplinados e workaholics que amam o dever e o colocam acima da diversão e do descanso. "Descansa, militante!" diria Nietzsche nos dias atuais. Seja este um militante cristão, seja um militante de esquerda que carrega em seus ombros (como o camelo) o peso do mundo e daqueles que sofreram as injustiças.
Jesus, o sofredor, é o camelo por excelência. Ele carregou, na mitologia cristã, os pecados de todo o mundo diante de seu pai celeste. Mas, se Jesus era Deus, segundo essa mitologia, a diferença deste personagem para nós... é insuperável. É por esse motivo que a compaixão, um forte ideal cristão, é um desmonte à vontade de viver. A compaixão se ocupa da miséria do outro e o trata como um incapaz. O excesso de compaixão e piedade, somados à caridade compulsória... são venenos que a cultura cristã (aspirante à miséria) nos relega.
O camelo, de outras formas, pode estar em muitas intenções e sistemas humanos. O camelo está no árduo esforço que um funcionário faz para que a sua empresa enriqueça e os filhos de seu patrão gozem de férias na Disney. O camelo está presente no executivo que sai de casa para fazer dinheiro e ganhar o mundo, mas adoece de tanto trabalhar e deixa sua família ao desprezo.
O camelo também é o moralista cristão que se orgulha em carregar pesos pesados, como o sacrifício e a mutilação de si ao renunciar o mundo real em troca de um suposto mundo vindouro. Ele não fuma, não bebe, não transa antes do casamento, não ouve outros estilos musicais a não ser o gospel... e ele ama se sentir honrado por este peso que o esmaga. Ele ainda pede mais para se sentir digno o suficiente diante de todos.
O camelo é o frequentador religioso das academias que submete seu corpo a uma maratona incansável para ser admirado por sua estética e músculos; é o cientista e o filósofo que se orgulha em se encher da "erva do conhecimento" e ser reconhecido como sábio e intelectual. O camelo é nosso orgulho clamando por reconhecimento através do sadomazoquismo desenfreado que nos assola. Ele pode ser o superego freudiano que em excesso nos quebra existencialmente ao suprimir toda nossa criatividade e vontade de viver.
Esta é a nossa dimensão interna chamada: camelo!
-Gabriel Meiller