terça-feira, 20 de setembro de 2022

Sociedade do cansaço como sociedade da irreflexão

 


Nossa forma de valorar a qualidade de vida através do que fazemos na pós-modernidade tem sido uma valoração que faria os antigos caírem na gargalhada. Os renascentistas se ofenderiam com nossa loucura desvairada em lidar com o conhecimento de forma tão superficial e desinteressada, tratando tudo e todos como um meio para alcançar o fim: a felicidade. Ou melhor, a ilusão da felicidade por meio do entretenimento globalizado. Este entretenimento globalizado é um frenético movimento de (auto)inovações e (auto)aperfeiçoamentos a todo momento e sem a valoração e medição adequada sobre a necessidade dessa constante mudança e troca de coisas, objetos, cargos, pessoas, etc. 


Isso significa que virou um quase extinto para o homem moderno este constante movimento de cultivar a alta performance a todo custo e em todas as áreas. Vemos, por exemplo, academias lotadas pela busca do corpo ideal. Entretanto esta busca é desacompanhada de reflexão mais profunda sobre: condições a longo prazo de manter esse estilo de vida; grau de necessidade da busca deste ideal; consciência das etapas e da disposição energética que será investida nesse caminho trilhado.  Constatamos pessoas se formando em universidades, mas não calculando os próximos passos a serem dados ou o fato de não chegarem a completar o curso. Vemos pessoas que se casam, têm filhos e se divorciam, recomeçando o ciclo de forma sistemática como que em instinto. Mas não se questionaram sobre a utilidade ou se de fato querem ter filhos, casar, etc.


Muitos buscam o que buscam pelo fato de uma sugestão midiática e pelas bolhas sociais em que estão. A psicologia das massas do cotidiano fez seu trabalho de pauperizar as ações e reflexões do ser humano que é bombardeado por sugestões de hábitos, desejos e fetiches humanos divulgados pela sociedade de forma marketeira. Estes correm uma corrida dos ratos sem o questionamento principal: "Quero isto de fato ou só estou nesta corrida por ego inflado? Pela vontade desmedida de ganhar e me reafirmar em cima do outro em qualquer área e sob qualquer custo?"


Nossa sociedade é a sociedade do cansaço, pois somos poliatletas em uma enorme maratona com diversas modalidades simultâneas. A felicidade virou obrigação e os requisitos mais básicos precisam ser alcançados por nós: corpo ideal, renda ideal, família ideal, hobbies e forma de se vestir ideal... arre! Para o caralho tudo isso! O ideal mata o real e o cansaço exaure aquele que não exerce o pensamento crítico e pessoal sobre o que quer e para onde irá. 


Só poderá ser um bom competidor quem sabe o que de fato quer e por isso reserva tempo e energia ao que deseja e pelo que de fato é movido. Quem deseja o sucesso em tudo não pode alcançar uma alta performance e logo se cansa, sobrecarrega-se e provavelmente não alcançará nada. As redes sociais são desonestas, visto que mostram somente o ideal deturpado de felicidade de alguns, mas não mostra os esforços concentrados e energia exclusiva que estes investiram para chegar até esta posição, muito menos os momentos de crise e agonia pelo qual passaram. 


Muitos Sísifos emergem na pós-modernidade, visto que são escravos de suas irreflexões e impulsos. São inferiores ao Sísifo original, pois nem sequer chegam ao cúme do monte com a pedra, visto que cansam antes do trajeto a ser cumprido e decidem um outro trajeto, um outro projeto de vida, motivados pela ilusão de melhoria e do falso aprimoramento. 


Somos doutrinados e ensinados a desejar de acordo com as sugestões do meio; sujeitos do desejo razo e impensado. Embora nossa maior área do cérebro seja formada pelas partes responsáveis por decisões emotivas e viscerais, podemos usar as áreas mais racionais para administrar nossos impulsos e desejar com intensidade o que podemos almejar além das meras induções externas e das propagandas que visam manipular e manufaturar o desejo da massa para melhor controlá-la. 


É raro hoje em dia o verdadeiro ato de reflexão... em que o indivíduo dedica tempo e cessa tudo o que está fazendo para pensar e traçar planejamentos pessoais de acordo com sua consciência. Hoje a tecnologia e o mundo globalizado podem planejar, desejar e sonhar por nós. Estamos perdendo nossa autonomia em desejar, lutar, pensar e sentir de forma única e subjetiva. 


-Gabriel Meiller

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Sentimento oceânico e a necromancia vivificadora

 



Romain Rolland, em carta a Freud, descreveu uma experiência mística que teve repetidas vezes como "sentimento oceânico" e que em síntese é a sensação de êxtase e de conexão com o todo e sentimento de algo ilimitado, etc.  


O que Rolland descreveu pode ser sentido de diferentes formas por diferentes pessoas. Mas o que chama a atenção é esta experiência de absorção e impacto deste sentimento. Algo espiritual? Sem dúvida! Transcendental. Mas não está necessáriamente ligado a divindades ou religiões; ateus, agnósticos e simpatizantes da grandeza e da profundidade do conhecimento certamente já sentiram um vislumbre desse sentimento oceânico! 


Minha espiritualidade, assim como a espiritualidade de muitos, é ficar embasbacado com a profundidade e riqueza do conhecimento científico, principalmente quando a cosmologia, astrofísica e outras ciência entram em ação. Quem não navegou por estes territórios e ficou pensativo, impactado, intrigado... e se sentiu imerso nesse oceano de emoções diante da complexidade e mistério do universo? 


A ciência é esta vela no escuro, como metaforou o amado Carl Sagan; este, acima de tudo, nos ensinou esta "espiritualidade científica", ou seja, esse entusiasmo ao encarar a ciência de uma forma vivificante e não mais tediosa como faria um adolescente do ensino médio entediado e sonolento. 


O sentimento oceânico me toma conta, principalmente nas madrugadas e nos momentos em que transito por vários temas transdisciplinares. Gatilhos são ativados e levam a outros temas e... de repente me sinto agoniado por não conseguir devorar todos esses macro-assuntos, pois isso levaria décadas de estudos. Então me sinto afogado em um oceano epistemológico e com uma voracidade que não prosseguiria sem árdua e constante disciplina. Este é o momento em que me afogo e desejo a onisciência fantasiosa expressa na Bíblia. 


É na constatação de minhas limitações cognitivas e existenciais perante toda a existência que eu posso falar como Paulo de Tarso: "Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento... da existência!".  Pois a existência é palco de todos os fenômenos que são maiores do que as interpretações humanas desses fenômenos. Temos no nosso imaginário coletivo todas as contradições possíveis e que são produto da tentativa de dizer o que de fato é a existência. 


Alguém pode mesmo dizer o que é a vida? Para nossa impotência existencial, nasceram os nossos ídolos. O homem, fraco por natureza, concebeu um deus todo poderoso; limitado em conhecimento, concebeu um deus onisciente; pequeno e presente somente a um lugar por vez, imaginou que estaria sendo vigiado e seguro pelo vigilante que estaria em todo lugar: o onipresente. E então, ao invés de conhecer e expandir seus conhecimentos, o homem covardemente se enclausurou na Idade Média, entregando a riqueza do mundo ao seu ídolo asqueroso e impertinente. O conhecimento foi considerado pecaminoso e pervertedor. Esta era de obscurantismo somente teve fim quando o homem se revoltou contra este ídolo e voltou aos caminhos do amor pela Sabedoria. Sim, ela! A dama seduzente e extasiante que faz a humanidade se perder em suas curvas; que dá ao homem o terror e o entusiasmo pelas incertezas dos rumos do universo. 


Ela nos retirou da era da escravidão medieval e nos levou a um novo caminho; incerto, é claro! Aonde não sabemos para onde iremos, como advertiu Nietzsche; mas que nos faz peregrinar pelo vale da liberdade em saber que somos humanos, demasiado humanos. Presos e escravizados; não por deuses, mas por nossas vontades e desejos. E isto, a responsabilidade sobre nós pelas tragédias e grandes feitos, é o que mais importa e nos dignifica. E não a covarde transferência para outrem; não a confiança a "Ele" ou "Eles"... mas a nós! E isto nos basta! 


E ao retornar de meu delírio e êxtase, sento a bunda na cadeira e me preparo para ser consumido neste fogo consumidor. Disposto a navegar pelas correntes que me levem a algum ponto deste oceano epistêmico. Leituras e reflexões atrás de mais leituras e reflexões; ergo sacrifícios nestes altares em que a tinta dos que morreram a muito tempo, clama percepções e pontos de vista por meio de livros. Então me comunico com estes mortos e sou levado ao além do senso comum, tido como louco por uns... lúcido por outros. 

-Gabriel Meiller