segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O arqueólogo de ruínas

 



Este texto é inspirado em Memórias do Subsolo, ou melhor, no narrador de Memórias do Subsolo de Dostoiévski. Aqueles que observam enojados os meus movimentos literários recentes, percebem um falatório sobre mim parecido com um narcisismo e... de fato é um narcisismo implícito; talvez até explícito. Ultimamente tenho me analisado com olhar de psicólogo. Melhor ainda: com um olhar melhor do que o olhar "cognitivo comportamental superficial" de um psicólogo: o olhar profundo de um psicanalista! 


Hey... olhem aí o meu narcisismo saindo pelas frestas do subsolo, esse danaaado! Em meu narcisismo eu mesmo me examino, identifico minhas fantasias e promovo uma solução para desfazer esses pontos conflituosos. Eu mesmo sou o meu psicanalista, o meu confrontador e o meu redentor... querem mais narcisismo que isso? Minha tentativa de percorrer minhas ruínas internas e examinar cada pedrinha, cada fóssil e entender a origem de todos os destroços sepultados... é o sintoma do meu narcisismo e a sua redenção parcial. Digo "parcial" porque o narcisismo primitivo sempre fará parte de nós e estará tentando nos convencer de que não somos narcisos... de que não apreciamos e não esculpimos nossa imagem interior e de que não nos comprazemos com nosso ego e sua imagem diante do mundo. Freud sabia que o narcisismo era um espectro e que ao se tornar excessivo... poderia petrificar-se em transtorno. 


Estou certo nessa constatação, senhores? Ou será que o que eu falei foi somente uma racionalização e uma generalização minha somente para justificar meu narcisismo? No caso, isso também é mais uma confirmação do meu narcisismo. O homem do subsolo dostoievskiano é um homem ambíguo, vaidoso, contraditório, covarde e... narcisista! Talvez não seja no sentido patológico, mas no sentido secundário em que a volta de pulsões para si, para o seu ego... ocorre mais tarde na vida adulta por conta de traumas que o fazem se enclausurar em si mesmo. Mas o que eu admirei nesse homem liquidado pela vida foi sua sinceridade. Seu sincericídio combalido de quem já não consegue nem disfarçar sua fachada porque ela já foi derrubada. Então, ao chegar no ápice do ridículo, ele mesmo decide se abrir sem filtros, entendendo que não há mais nada a se perder, ele já se tornou o maior ridículo de todos aos olhos de todos... até aos olhos daquela meretriz que o acolheu bêbado, quando ele estava obcecado atrás de seus colegas de infância bulinadores para provar que ele era gente,  que ele significava algo para eles e tinha de ser respeitado, mesmo depois de todo o enxovalho e papel de ridículo que sofreu na noite anterior porque precisava provar algo a eles.


 Pois bem, eu me identifiquei com o homem do subsolo, eu reconheci em mim esses sintomas e... querem saber? Até nesse ato de me reconhecer neste personagem eu fui narcisista, como se essa chaga tivesse que ser só minha, como se essa autocomiseraçãozinha fosse só minha e não pudesse ser de mais ninguém. Não! Não empresto a vocês a fantasia do meu sofrimento com a qual me visto, desfilando e falando de mim... não! Pelo menos nisso me deixem ser especial. 


Mas vamos direto ao ponto... entremos em minha caverna e me deixem expor o porquê me considero tão narcisista assim. Ps: talvez eu esteja exagerando e dramatizando tudo isso. Mas isso também é parte do meu narcisismo, senhores. 


Ao descer à caverna nesses últimos dias eu tenho enxergado minhas motivações ao ajudar as pessoas sem elas pedirem ajuda. Em que eu sou tão solícito? Quando eu sei de algo e me ofereço para ajudar quem não pediu minha ajuda. Quando, por exemplo,  estou aprendendo sobre o mercado de ações, sobre análise técnica e então saio pregando esse evangelho aos meus amigos mais próximos, ou talvez até à instrutora de academia.  O que eu quero com isso? Qual o meu real interesse em dizer que seria bom eles investirem, comprarem ações, colocarem algo em renda fixa? A minha autopromoção, oras! Esse é o momento perfeito para que eu mostre como sou bom, como sou atencioso, como tenho paciência, como sou solícito. O meu bem estar se satisfaz quando mostro todas essas fantasias sobre eu mesmo e nessas aventuras eu vou manifestando meus sintomas e meu arquétipo de sábio, inteligente, poderoso... até que de tanto me aventurar eu começo a enxergar esses padrões inconscientes e me questionar,  fazendo uma autosabatina e até uma inquisiçãozinha para sentir que sofri o bastante e posso me desculpar provisóriamente por esses atos infames. 


Eu estou escrevendo para mim... não é para vocês que estão me lendo até esse momento. Mas se vocês lerem e me derem tapinhas nas costas, comentarem como eu tenho um olhar aguçado, um senso de clareza... ah! É aí que vou vibrar internamente e, depois desse orgasmo intelectual e afetivo, irei me reprimir ao dizer a mim mesmo:


 "Isso não é motivo para se orgulhar, é apenas mais um maldito reforço do seu narcisismo e da sua carência afetiva. Se você não foi admirado e não recebeu atenção na escola de seus colegas, ou de seu pai, dos colegas da rua... o problema é seu. Não venha tentar conseguir o que não teve com 27 anos na cara, seu marmanjo descompensado!" 


E então ao escrever até agora e constatar tudo isso... me dá uma certa tristeza. Não mais a tristeza narcísica para conseguir a atenção que não tive e desfilar com meu sofrimento e minhas angústias. Mas a tristeza silenciosa que constata o fato de que: não há muito o que fazer! Há padrões comportamentais a serem desconstruídos, excessos a serem medicados e suavizados... e uma vida a seguir consciente de que há buracos que não se fecharão. Eles serão tapados superficialmente, mas ficarão ali como uma armadilha para os momentos em que algum desavisado tatear com um pouquinho mais de pressão e for engolido desavisadamente. E, para encerrar de forma reafirmativa em meu narcisismo: talvez eu não procure ajuda psicológica, exatamente pelo fato do meu orgulho carente que me diz que eu posso resolver esses problemas sozinho...  Ele diz o seguinte: 


"Vejam: eu estudei para isso! Eu sei como traumas são criados e como posso amenizá-los, como posso desconstruí-los. Só preciso recorrer a olhares atentos que me observam de fora e questioná-los sobre meu comportamento e então... mãos à obra! Não... eu não preciso de psicólogos... eu não sou tão burro, tão fraco ou sem base psicológica e psicanalítica... eu sei o que é  a vida e como posso sair dessa neurose excessivamente egoica, vejam! Eu sei... eu sei!!!! Vocês não estão falando com um leigo... vocês estão falando com um neurótico reafirmador que a todo momento quer mostrar pra todos, mas principalmente a si mesmo: de que ele sabe de algo e é capaz de algo!" penso eu atordoadamente megalômano em minhas ruínas. 


Ps: agradeço a todos os meus vilões que em sua maldade e desprezo, me fizeram forte. Embora eu seja bastante frágil no ego, me tornei forte exatamente por intuir que fazer tudo por mim mesmo, em um surto de autossuficiência e isolamento, seria uma forma de não precisar de ninguém e nem de suas aprovações que eu tanto desejava. Mas então por que eu ainda as busco??!?!? 


-Gabriel Meiller

A arte da maiêutica

 


     


 


A maiêutica é a arte utilizada e formalizada por Sócrates que consistiu em dar luz às verdades de alguém por meio de perguntas, sendo um fator muito importante para o autoconhecimento de quem utiliza essa ferramenta. Por favor, entendam "verdades" como constatações que fazem sentido pessoal para aquele que medita sobre a vida.  E é exatamente sobre a importância da maiêutica como ferramenta de autoconhecimento que precisamos meditar para que possamos partir de algum ponto para navegar no oceano da vida. 


A vida é como um enorme oceano profundo, extenso e incerto; sempre partimos da terra continental para navegar pela vida. As ilhas, os continentes e outros relevos terrestres são o nosso porto seguro que nos abriga. Somos formados como seres humanos em baixo de tetos de culturas que nos ensinam a enxergar a vida de algumas perspectivas. Somos em grande parte um depósito do Outro, isto é, de todo um imaginário que veio antes de nós e que nos educou.  As ideologias, as crenças religiosas, os sistemas econômicos e as instituições são os elementos que compõem a parte continental que nos é familiar. São todos o nosso chão, nossa âncora e nossa estabilidade. 


Quando somos crianças o círculo desse relevo continental é ainda mais delimitado: ficamos em nosso castelinho e em redomas que abrigam nossas ilusões alimentadas por nossa família. Essa estabilidade é necessária pelo menos na tenra infância, assim como a lagarta precisa de seu casulo e do estreitamento desse casulo para que quando ela estiver maturando... possa trabalhar a musculatura interna para rasgar esse casulo e desenvolver suas asas, virando uma esplendorosa borboleta. Se esse casulo for rompido muito antes do desenvolvimento de sua musculatura, a lagarta não se metamorfoseia numa borboleta. 


Pois bem... quando chega a hora de navegarmos pela vida e conhecer os sete mares, precisamos estar preparados para cada surpresa e descoberta. Os diferentes mares e continentes abrigam diversidades muitas vezes espinhosas, mas nem por isso menos entusiasmantes. Os ambientes nos quais não estamos familiarizados (nos quais nossa família não nos criou) podem parecer estranhos, obscuros ou tóxicos demais. Para alguns podem até ser... mas muitas vezes são apenas paisagens exóticas nas quais não tivemos raízes e teremos que nos adaptar a esses terrenos que possuem outros nutrientes, outro solo e outro clima. É necessário aprender a apreciar o que não é familiar, o que não nos foi cultivado no passado. 


Em meio a tantas mudanças que a vida me promove e que eu frequentemente aceito... encontro uma única pessoa que está comigo o tempo todo nos diferentes relevos continentais: eu mesmo! Já experimentaram conversar consigo mesmos em voz alta? Travaram diálogos e se fizeram perguntas esperando alguma resposta?  Esta é a arte da maiêutica! Eu desenvolvi uma regra de ouro de mim para mim mesmo: se, após me encontrar comigo mesmo eu não conseguir uma solução suficiente para algum conflito ou alguma crise que estou passando... então eu recorrerei a alguém que, talvez, possa me auxiliar. Entendam que isso não é uma espécie de narcisismo, mas uma decisão sábia em meio a uma época em que não costumamos nos ouvir e preferimos consultar um guru sem antes ouvirmos nosso eu interno (ou eus internos). E nos tornamos vulneráveis quando preferimos ouvir mais aos de fora (que muitas vezes não nos conhecem no dia a dia) do que a ouvir a nós mesmos e às nossas intuições mais profundas. 


É nesse hábito que conseguimos fixar nossas raízes em novos continentes ou ilhas até o momento em que decidirmos partir para novas paisagens silvestres, brincando de exploradores que vão para onde lhes der vontade, sempre conduzidos pelo espírito infantil e aventureiro que ama o processo de descoberta da vida e de suas múltiplas possibilidades de se manifestar. 


-Gabriel Meiller