sexta-feira, 31 de maio de 2024

O animal doente: o homem teleológico


A teleologia é o hábito de dar finalidade às coisas. Poderíamos mencionar a frase "os fins justificam os meios" para isso. Existem diversos ramos na teleologia, isto é, no hábito de dar finalidade a algo. A finalidade do trabalho costuma ser pensada como: enobrecimento do caráter e a possibilidade de sustento aos que vivem no sistema capitalista; a finalidade da musculação é pensada como requisito para "colocar o shape" e melhorar a saúde física e mental. A finalidade da escola costuma ser pensada como a propiciação de condições básicas para criar um cidadão crítico e independente (risos). A finalidade da faculdade  costuma ser pensada como a formação e habilitação do estudante para exercer uma profissão (risos, novamente). 


E a finalidade da vida?  Quem ou o que irá se atrever a colocar uma finalidade a essa metadinâmica? 


Só podem ser as religiões e suas réguas morais e existenciais, é claro. Só podem ser os líderes religiosos atrevidos que são ingênuos o bastante para achar que sabem o que é a vida e o que devemos fazer dela (lágrimas).


"Vivemos para adorar e glorificar a Deus..." diria um protestante ou católico. 


"Vivemos para amenizar o sofrimento dos seres sencientes..." diria um budista. 


"Vivemos para fazer o bem e evoluir aqui nesta vida..." diria um espiritualista. 


E então os mestres da finalidade ganham o status de coachings sobre o sentido da vida. Estes são os verdadeiros mestres da finalidade, os homens teleológicos. E o excesso de sentidos e finalidades que damos à vida podem trazer exaustão, cobranças, medos e angústias. 


Mas... e se quisermos romper com algumas réguas morais normativas? E se nos portarmos como espíritos livres questionadores que desenvolvem sua própria finalidade? Se tentarmos, em alguma medida, cultivar um pouco do além-homem de Nietzsche? Seremos um cão que anda sozinho com a própria coleira na boca, atravessando as ruas da cidade. Nos primeiros momentos, viver sem a finalidade padrão pode nos trazer novos medos e inseguranças, isto é verdade. Mas depois dessa mudança a leveza e o sentimento de pertencimento a si mesmo não têm preço. É necessário, no entanto, vencer o medo do desconhecido e mergulhar (mesmo que de forma tímida) na moral que vai para além do bem e do mal. É necessário definir o seu próprio conceito de bem e mal.

 

E um dos benefícios ao não colocar metas e finalidades em tudo o tempo todo (ou melhor: colocar a sua própria meta e finalidade em tudo) se concretiza na sanidade mental. O relaxamento do córtex pré frontal ocorre quando não há uma finalidade constante nos assombrando e psicossomatizando nossas emoções em sintomas corporais como dores de cabeça, tensão muscular, queda da imunidade, dores de estômago, depressão, ansiedade, etc. 


Se queremos ser mestres da finalidade... que criemos a nossa própria finalidade por meio dos nossos próprios valores para que assim sejamos como o cão da imagem abaixo. 





-Gabriel Meiller

quarta-feira, 15 de maio de 2024

A metamorfose do camelo em "Assim Falou Zaratustra"

 

No primeiro discurso de Zaratustra, após ele perceber que sua missão não era falar às multidões , mas sim agir como um lobo desgarrado que afasta do rebanho as ovelhas oprimidas pela moral de rebanho, ele menciona sobre as três metamorfoses do espírito humano. Os arquétipos são em sequência: camelo; leão; e a criança! 


O discurso de Nietzsche nesse livro ficcional, por meio de sua personificação zaratustriana, tenta encarnar todos os seus principais conceitos já explanados anteriormente, principalmente o conceito do Übermensch (além-homem ou super-homem). E seu primeiro discurso retrata a trajetória na qual o espírito humano terá que  percorrer até alcançar esse ideal nietzschiano. O primeiro estágio a ser superado para que o Super-homem possa emergir é o estado pesado e moralista da humanidade: o camelo. 


O camelo é descrito como  a representação de um espírito forte pelo fato de suportar as pesadas cargas e ainda carregá-las com reverência. Que cargas são essas? São as tradições humanas, ideologias, dogmas e toda obrigação representada pelo imperativo categórico kantiano no qual Nietzsche se opunha severamente: o "tu deves!". O dever, a obrigação em demasia é um aspecto que sufoca o ser humano e o priva de chegar ao estágio criador por excelência. Quem é criativo? Quem não segue padrões a todo momento; é necessário ser transgressor para ser criador (papel que começa no leão e se realiza na criança), porém, o camelo não quer ser criador, e sim um imitador! 


O camelo pode ser representado pelos moralistas, pelos "responsáveis", pelos disciplinados e workaholics que amam o dever e o colocam acima da diversão e do descanso. "Descansa, militante!" diria Nietzsche nos dias atuais. Seja este um militante cristão, seja um militante de esquerda que carrega em seus ombros (como o camelo) o peso do mundo e daqueles que sofreram as injustiças. 


Jesus, o sofredor, é o camelo por excelência. Ele carregou, na mitologia cristã, os pecados de todo o mundo diante de seu pai celeste. Mas, se Jesus era Deus, segundo essa mitologia, a diferença deste personagem para nós... é insuperável. É por esse motivo que a compaixão, um forte ideal cristão, é um desmonte à vontade de viver. A compaixão se ocupa da miséria do outro e o trata como um incapaz. O excesso de compaixão e piedade, somados à caridade compulsória... são venenos que a cultura cristã (aspirante à miséria) nos relega.


O camelo, de outras formas, pode estar em muitas intenções e sistemas humanos. O camelo está no árduo esforço que um funcionário faz para que a sua empresa enriqueça e os filhos de seu patrão gozem de férias na Disney. O camelo está presente no executivo que sai de casa para fazer dinheiro e ganhar o mundo, mas adoece de tanto trabalhar e deixa sua família ao desprezo. 


O camelo também é o moralista cristão que se orgulha em carregar pesos pesados, como o sacrifício e a mutilação de si ao renunciar o mundo real em troca de um suposto mundo vindouro. Ele não fuma, não bebe, não transa antes do casamento, não ouve outros estilos musicais a não ser o gospel... e ele ama se sentir honrado por este peso que o esmaga. Ele ainda pede mais para se sentir digno o suficiente diante de todos. 


O camelo é o frequentador religioso das academias que submete seu corpo a uma maratona incansável para ser admirado por sua estética e músculos; é o cientista e o filósofo que se orgulha em se encher da "erva do conhecimento" e ser reconhecido como sábio e intelectual. O camelo é nosso orgulho clamando por reconhecimento através do sadomazoquismo desenfreado que nos assola. Ele pode ser o superego freudiano que em excesso nos quebra existencialmente ao suprimir toda nossa criatividade e vontade de viver. 


Esta é a nossa dimensão interna chamada: camelo! 


-Gabriel Meiller