sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O surto

             


"Horrendo, horrendo... horrendo!" falou a boca, cuja mente estava repleta de cólera e o coração fervilhando de mágoas. 


As emoções costumam ser tidas como violentadoras da realidade objetiva muitas vezes; entretanto, há aqueles momentos, como este, em que as emoções apenas ressaltam uma constatação lúcida do absurdo da vida, principalmente a vida em sociedade. 


Vamos lá: sabemos que há coisas horrendas debaixo do tapete; temos convicção que nossa bestialidade evolutiva não acompanhou a rápida evolução social e cultural de milênios. E aquela mente pensou as seguintes coisas no auge de sua lucidez: 


"A democracia é um eterno revezamento entre quem se fode e quem se dá bem; um absurdo de sistema em que todos os imbecis têm a mesma voz que os sensatos. 


A vida sempre foi uma hostilidade para os que são prezas dos mais fortes e poderosos, daqueles que, estando ou não em uma democracia, vivem da mesma forma e sob os mesmos privilégios. 


Os homens são imbecis, seduzidos por todo tipo de ideologias e por meio delas sofrem, matam-se e se alegram como crianças ingênuas.


A vida pela vida é um absurdo.


A morte como ameaça constante é uma limitação àquele que a teme e uma liquidação aos que a ignoram. 


 Toda a experiência da raça humana é apenas uma luz de lanterna que pisca rápidamente e se encerra na escuridão do tempo de bilhões de anos. 


O sofrimento humano é construído pelas fantasias da razão e as inúmeras projeções do que deixamos de fazer ou possuir; os demais animais não sofrem a não ser quando são abatidos ou se perdem do rebanho." 


E como uma lareira em brasa, a mente fervilhava junto com o coração. As emoções eram como um forno a lenha que ao esquentar, demoraria para se apagar. A mente poderia divagar para pensamentos fúteis e inúteis, mas o coração estaria lá, chefiado pelas mudanças fisiológicas, pelas liberações de cortisol e adrenalina que ecoavam em todo o corpo e que demorariam a esfriar. 


Então a emoção cessou depois de longos ciclos de explosão e irracionalidade disfarçada de sensatez se instalou. Ideologias foram vestidas, o ritual à democracia e a valorização de seus ideais voltou a ser cultuado e a vida foi aparada para caber nas apurações de sentido daquele ser. Tudo fazia sentido, tudo tinha um propósito e um motivo de riso. 


Após um longo hiato, aquela consciência percebeu que as análises eram submetidas ao filtro das emoções e que a vida não era passível de ser avaliada e por isso a morte representava um misterioso encerramento que limitava as perspectivas e obrigava os seres a viverem por viver, sem esperar nada em troca.  


-Gabriel Meiller 




 


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A exaustão do choque entre as fantasias e a realidade


Enxergamos o mundo pelas janelas da nossa alma: a fantasia. A fantasia está constantemente sendo construída e reconstruída, sendo a única forma pela qual enxergamos ao mundo. Todo o histórico  de experiências que temos na vida se acumula em nosso cérebro e em nossa mente na forma de engramas.


 Experiências traumáticas bem assimiladas serão uma composição das nossas interpretações sobre o mundo, uma volição, uma inclinação em interpretarmos um acontecimento de acordo com um sentimento ou padrão que ficou gravado em nós. 


Esse assunto teórico é extremamente prático, principalmente quando exponho as minhas próprias chagas como encarnação do conceito a ser explanado. Esse é mais um daqueles momentos em que preciso limpar minhas chaminés por meio da escrita e da exposição pessoal por meio dela: 


Eu cresci debaixo de ambientes que imprimiram a mensagem de que eu não era bom o suficiente. Essa impressão teve a colaboração de terceiros, principalmente de alguém que influenciou de perto a minha criação, adotando uma pedagogia de humilhação, regada com palavras ásperas e menosprezo. Esse assentamento implantado em meus alicerces psíquicos foi aceito por mim,  que internalizei piamente essa narrativa. 


Digamos que uma criança passe a acreditar firmemente e ingenuamente no que os adultos e colegas dizem sobre ela, principalmente quando dizem ou mostram de forma sistemática o quanto ela é incompetente, burra, indigna de entrar para o grupo. A criança tem a sua parcela de responsabilidade ao aceitar essas narrativas, mas penso que não podemos cobrar de um chimpanzé uma pintura semelhante à de Picasso. Ilustro com isso que a responsabilidade foi mínima para alguém que está desenvolvendo suas capacidades críticas e de autodefesa. Mas, para não adotar um ar de vitimização perante a todos (olha eu, novamente, buscando amenizar os olhares críticos e julgadores sobre mim), eu admito que pelo menos 5% eu poderia ter feito para não engolir tal complô de narrativas contra mim. 


Então eu cresci aprendendo que se não há uma intimidade ou aceitação minha com algum grupo, a culpa é minha e o desajuste é meu! Essa premissa subconsciente, meus caros, é o início de um tipo muito comum de narcisismo: o narcisismo da consciência de culpa do mártir. Tudo o que ocorre de ruim é culpa minha, como se tal poder (de ser rejeitado) fosse exclusiva e desgraçadamente meu. Essa premissa que foi costurada no âmago da minha fantasia fez de mim uma criatura distante, desanimada com a interação em grupos, cética para com as amizades e interações sociais coletivas demais. Outras pessoas poderiam reagir de outra forma, sendo mais incisivas, extrovertidas e provocadoras diante dos grupos, não arredando nenhum pé diante deles. Mas a minha violência, diferente da violência dessas pessoas, é passivo-agressiva. 


A fantasia excessiva cultivada por mim de que há alguém que não gosta de mim de forma específica, de que não me encaixo em grupos e que foi reforçada pelas minhas atitudes consequentes dessa crença (ao me isolar dos grupos quando tenho oportunidade de ingressar neles), fez de mim alguém perseguido pelo meu fantasma! O fantasma é a fantasia dilacerada, excessivamente fixada, petrificada e perpetuada pelo trauma não superado. 


Eu tenho um olhar lúcido o bastante para detectar tudo isso, mas também a humanidade mais comum para não superar esse fantasma. E muitos aspectos da minha personalidade são uma consequência entre esse cenário fixo de rejeição x aceitação. Logo, a revolta (que me faz humano e lúcido) prevalece, me fazendo descartar o anseio em socializar e ao mesmo tempo, me causando medo e raiva por não ser aceito. Entretanto, racionalmente eu penso: mas fui eu que me isolei, por isso eles não ligam muito para mim e a interação é menos frequente, pois eu me isolei física e psicológicamente. 


Essa dualidade conflituosa entre me revoltar e não querer companhia, mas depois de um tempo querer a companhia do grupo, revela um dos aspectos mais humanos presente em mim: a irracionalidade e o conflito interno de desejos. O que fazer, senão conviver e acolher tudo isso, como demonstra Dostoiévski? Este é o meu cálice, imposto pelo determinismo da vida e que talvez possa ser amenizado pela trilha que percorrerei durante a minha existência. O que dizer? Esse sou eu, sob o escrutínio da minha própria análise que também não deixa de ser uma fantasia sobre mim mesmo.


-Gabriel Meiller.