"Não seja bicho do mato..." era uma frase que constantemente eu ouvia de algumas pessoas. Principalmente da minha avó materna e da minha tia, irmã do meu pai (um bicho do mato até hoje). Esse relato que estou dando andamento é uma epifania que vai me fazer sair dos trilhos da apatia social. "Será?", penso eu. Não sei... é tanta coisa que envolveu minha criação e que me moldaram através de uma referência paterna ausente e apática pela depressão... que eu temo trilhar o mesmo caminho e que, na verdade, já tenho trilhado.
Me sinto como em uma mesa de cirurgia com o peito aberto e na presença do cirurgião: eu mesmo. Eu tenho alguns assistentes, como o meu terapeuta! Ele é um facilitador, através de instrumentos e perguntas que fazem com que eu me reveja por outros prismas. Meus alunos do fundamental II também são outros assistentes que me ajudam a compreender que existem outros modelos paternos mais "normais" e extrovertidos que diferem do modelo que eu tive. Tal aluno contou uma vez que seu pai o levou a um bar e estava jogando sinuca com os amigos.
Atordoado eu pensei: mas... meu pai nunca fez isso comigo. Meu pai não tinha amigos próximos, não tinha encontros e interações com eles. Minha mãe deixava de ter amizades porque meu pai era um controlador que usava a Bíblia e sua autoridade de "sacerdote do lar" para manipulá-la e "colocá-la no quadradinho". Então... por esse vácuo de modelos de relações atrofiadas, eu cresci igualmente atrofiado socialmente. É verdade que eu tinha outras referências na escola e na casa da minha avó. Entretanto, para o mundo de uma criança vulnerável... os pais dela são seus heróis e o modelo psicológico deles é seguido de forma inconsciente. O tempo que eu passava e convivia em casa com eles era esmagadoramente maior do que em outros ambientes. Além dessa alienação social, também tive a alienação existencial por conta da bolha religiosamente evangélica em que fui criado. Jogos de violência, assistir Dragon Ball, falar uns palavrões, músicas seculares? Nem pensar... as repressões vinham por parte da minha mãe e do meu pai. "Cuidado olhinho o que vê, cuidado boquinha o que fala..." repressões didáticas e sistemáticas aconteciam, ainda por cima.
A criança é como uma argila molhada facilmente moldável em temperamento e personalidade. Esse fato me fez reproduzir os modelos que eu presenciava e dava valor: o modelo dos meus pais. Desta forma, o fato de crescer em uma bolha evangélica e em uma bolha antissocial, me atrofiou e me marcou profundamente. Meu pai entrava na casa da minha avó e não dava um "Bom dia, dona Paulina, tudo bem? Como estão as coisas?" Ele "entrava como um burro e saia como um cavalo" ou "entrava mudo e saia calado" como ela mesma dizia. Eu cresci absorvendo esses modelos e hoje... meus "Bons dias " são muxoxos e apagados, muitas vezes substituídos por um "Oi..." desprovidos de um "tudo bem?".
"Ah... esses protocolos sociais me matam" pensava eu, sem entender o motivo. Agora eu entendo o motivo: não aprendi a ter ânimo em socializar com as pessoas. Estou me colocando como uma vítima, eu sei! Calem-se os mais críticos que vão me aconselhar ao seguinte: "Ta bom, mas você não pode ficar pensando no passado, precisa mudar." 'Sim.." eu diria. E continuaria de forma firme e conclusiva: "Mas eu não tinha pensado no passado por esta ótica e de forma tão clara. Então eu preciso, SIM, me colocar como vítima para entender meus traumas e saber como minha mente foi programada para que eu fosse um bicho do mato cristão."
Bem... hoje não sou mais cristão, mas ainda sou bicho do mato. Me livrei da alienação religiosa, mas também preciso me livrar da alienação social e sair da caverna. Por isso, processar o sofrimento e suas causas no processo terapêutico é vital para a libertação. Estamos falando sobre a cura pela fala e o que ela desencadeia em nós mesmos. Mesmo sendo formado em psicanálise, minha mente reverbera: na casa de ferreiro, o espeto é de pau!
Depois de todo esse processamento nas ruínas da minha própria caverna posso ir à luta e trabalhar na mudança desses padrões inconscientes. Mas nesse momento, meus caros, meu peito está aberto. É necessário fechá-lo com pontos para que ele cicatrize. Eu poderia expor mais coisas que provêm lá da época do meu avô, mas isso daria em um buraco muito mais profundo e que poderia ser resumido no seguinte:
A estrutura familiar da família do meu pai é conturbada nesse aspecto e essa conturbação chegou até à minha argila úmida da infância e hoje sou uma pessoa conturbada e antissocial com muitos e em boa parte do tempo.
-Gabriel Meiller
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