domingo, 28 de outubro de 2018

O Edifício Epistêmico de 500 portas da rua da Escuridão



    Era meia noite; eu estava  na encruzilhada entre a avenida Superficialidade com a rua da Escuridão. A avenida Superficialidade era muito iluminada, barulhenta, movimentada e cheia de casas de tijolos opacos e grandes prédios luminosos e ladrilhados. A rua da Escuridão estava em breu total! As luzes estavam queimadas e somente havia um fino feixe de luz bem longínquo. Quase imperceptível para os olhos atarefados e fatigados de quem corre frenéticamente entre a rotina de suas casas e o trabalho.

 A verdade era que o silêncio e a escuridão daquela rua me incomodavam; me apercebi desta discreta luz, juntamente com sons de flautas doces e de águas correntes de riachos. Sons muito baixos perto dos barulhos de buzinas e de carros da avenida. Então segui estes sinais e ultrapassei uma mureta divisória do beco que daria nesta rua. Eu segui o feixe de luz obstinadamente; ele estava muito longe. E quanto mais eu adentrava esta rua, mais imbricações  e desdobramentos ela apresentava. Se multiplicava em sub-ruas; os sons de flautas estavam por várias direções juntamente com o som de várias águas. Segui a luz até o final principal da rua e ela provinha de uma vala, coberta de folhas caídas de uma árvore. Escorei-me nela e desci suas escadas, caminhando até chegar ao subsolo; ele possuía uma estreita rua de barro. Ao seguir até o final desta rua subterrânea, me deparei com um enorme edifício antigo e cheio de plantas crescendo ao seu derredor, coberto de teias de aranha.

  Adentrei sua pequena porta principal e a cada andar que eu adentrava, subindo as antigas escadarias, existiam mais portas. Portas e mais portas.... que vinham antes de portas e mais portas... como uma infinita dízima periódica insistente.  Depois de curtas investigadas pelos nove primeiro andares, decidi explorar o décimo andar, em outra porta. Segui uma trilha de portas, entrando e saindo de várias como em um labirinto. E muitas vezes me encontrava com alguns seres lá dentro, estranhos para a atual época; alguns eram humanos... outros nem tanto.  Neste edifício, as portas  e sub-portas não acabavam nunca e os corredores possuíam diferentes decorações e formatos. Até que a partir da trigésima segunda porta haviam orquestras que cantavam em diferentes idiomas e de formas desritmadas; o violão estava em dissonância do baixo, juntamente em desafinação com o trompete e atabaques. Então sai e entrei por outro corredor com outra orquestra e miríades de outros ritmos menos estridentes, porém de igual desritmia. Mas isto me gerava certo fascínio; os ritmos me fizeram pensar; really makes me wonder!

  Depois disto, eu tentava sair daquele andar e entrar em outros; mas os fenômenos se repetiam e quanto mais eu tentava escutar os ritmos e sinfonias... mais não entendia as intenções dos seres lá reunidos e o que lá falavam, me embasbacando ainda mais com o mistério ininteligível. Em outros andares apresentavam-se estilos nunca antes vistos, e outros possuiam peças em que os animais eram os personagens: com uma sinfonia de relinches, latidos, grunidos e miados. Na plateia estavam grilos e besouros, juntamente com bebês balbuciando e aplaudindo. Uma mulher branca sem camisa e sutiã, com seus cabelos soltos e peitos de fora, estava bem ao fundo do auditório, com uma bandeira da Revolução Francesa numa mão; e lendo Simone de Beauvoir em outra; numa oscilação entre êxtases de alegria e explosões de raiva. Um homem caucasiano e sem sombra, atrás dela, estava sentado mais ao fundo, ora fumava seu charuto e olhava-a fixamente, deduzindo planos para tirar dela a bandeira e queimar o livro.

 Enquanto isto, no outro lado do auditório, eu vi um primata de grande porte ao lado do homo hábilis, travando uma luta contra o homo erectus que fazia parceria com o homo neanderthalenses, enquanto um homo sapiens sapiens comia pipoca e assistia ao conflito. De outro lado haviam cenas em holograma de caravelas navegando por mares, com diversas bandeiras de conhecidas nações; índios antropofágicos comendo torturadores da inquisição, enquanto militares lutavam contra guerrilheiros. Em outro holograma, Hitler e Mussolini conversavam exaltadamente em cima de um tanque que estava, em sua metade, coberto de sangue; sangue de judeus, negros e homossexuais. Eles pararam para saudarem com urras e vivas a explosão de Hiroshima e Nagasaki. Trump e Bolsonaro, observando estas cenas... se esmurravam em um canto da sala, mas se admiravam depois de cansados, enquanto comunistas faziam um coral, dizendo: "Fascistas!". Então Hitler e Mussolini, daquele mundo virtual, gargalhavam com o absurdo. Mas Getúlio era o juiz da luta livre entre o Coiso e o Coiso estadunidense. Mais aue de repente... Stalin e Lênin invadiram a sala e, munidos de metralhadoras Ak-47, matavam o coral de comunistas, se aliando a Hitler e Mussolini, fazendo Bolsonaro de engraxate de seus sapatos sangrentos. 

 Eu estava perplexo com o que enxergava, mas chocado porque não tinha visão de nada (compreensão). Os bebês pareciam felizes na plateia, juntamente com os animais no palco que apresentavam o espetáculo, em meio às lutas travadas entre estas personagens e entre as imagens de hologramas. Então fui para o último andar do edifício de 500 portas e presenciei o que mais me perplexificou: eu mesmo! Eu estava com um rosto pálido e uma expressão taciturna, refinada por lágrimas que gotejavam no canto esquerdo e rosto transpirando. Minha cabeça estava enorme e eu estava desorientado falando em códigos de uma estranha língua, sem parar! 

  Então perguntei a mim mesmo quem eu era; notei que depois da pergunta, me senti com deveras sede! Minha boca estava ressecada igual a do meu alterego em minha frente. Notei então que ele era eu; e eu era ele. Mas no vácuo da sala não havia nada... a não ser um espelho! Então corri desesperado pelos corredores entrando e saindo de portas em busca de água... mas só as ouvia emanarem atrás da parede do edifício que dava para o Oeste. Até que ao chegar ao térreo, e acompanhando a direção do discreto som de águas e de flautas, pude ver de relance do lado de um sofá do esdrúxulo hall de entrada, uma portinhola de madeira de 90 centímetros.

 Adentrei-a e avistei uma saída para a parte Oeste do edifício, nunca vista antes. Percorri o caminho barroso dessa portinhola que deu para um local fora da planta do edifício,  composto de um riacho ao final, contendo uma fonte jamais vista por mim. Então matei minha sede torturante com uma água indescritível, diferente das demais e que matou minha sede; diferente das outras águas. Esta água estancou minha dor de cabeça; então retornei ao andar bizarro e ao abrir a porta do Grande Espetáculo... nada tinha lá. Mas o palco estava no lugar, com vestígios de roupas e pêlos dos animais, juntamente com a chupeta de alguns bebês. "Processos inconscientes resolvidos!" Reverberou a voz da certeza dentro de mim; e de relance eu vi, pela fresta das cortinas fechadas do palco de teatro, Freud e Jung discutindo aspectos da Psicanálise e também sobre meus processos inconscientes resolvidos naquela sala após a água da fonte. Então fechei a porta e corri dali. E durante a tragetória de volta à rua da Escuridão... senti imensa tristeza! Os sons de buzinas de carros eram o sinal do fim daquela rua misteriosa e o começo da rotineira avenida chata. A água no mundo cotidiano era amarga perto daquela outra água da rua da Escuridão; e não matava a minha sede específica. As sinfonias do mundo cotidiano eram muito organizadas e entediantes; mas a do edifício da rua da Escuridão... algo surreal e encantador.

Cheguei à conclusão de que poucos, se comparados com os que ficam na avenida, acessam esta rua e desvendam a arte de explorar as portas e portinholas daquele edifício; seu nome se chama "Edifício Epistêmico" e suas quinhentas portas em doze andares e demais portinholas no hall de entrada, são somente o sumário de um grande livro enciclopédico existencial, em que o índice se chama: "Haja Luz...". Dizem que os que voltam daquela rua, sempre voltam diferentes do estado que eram. São internados em hospícios e diagnosticados como loucos. Nada é feito para interditar esta rua, pois os que tentam... são tragados pela curiosidade de adentrá-la e explorá-la ao último centímetro quadrado. Dos que entram nela... uma parcela não volta; outros voltam tardiamente e cheios de mais loucuras: balbuciam e falam detalhes de coisas nunca antes ditas. Inclusive os idiomas falados naquele edifício. O que seria este edifício? Somente os que entraram nesta rua sabem; e depois de saberem... ninguém os entende, ou não quer entendê-los.

  Edgar Allan Poe analisou a sensatez do povo da avenida da Superficialidade e considerou que amava a loucura da rua da Escuridão; dizendo que quando um louco parece totalmente são... é a hora de lhe colocar numa camisa de força novamente. Einstein praticamente morou e morreu lá; Niezstche explorou seus amplos recônditos; Sartre passou por algumas portinholas, juntamente com Ernest Becker. Sócrates/Platão e Aristóteles, guiados por Hermes Trimegisto, acharam passagens secretas para outros mundos (metafísicos) e exploraram muito bem alguns andares. Fernando Pessoa seguiu seus rastros, compondo lindos poemas.  Agostinho explorou o saguão e o último andar, falando sobre duas cidades, após suas explorações. Darwin observou atentamente a briga daqueles hominídeos no auditório teatral, conversou com o homo sapiens sapiens que comia pipoca, assistiu a peça de relinches, latidos, grunidos, etc... e colecionou besouros e grilos de lá. Freud conversou com os bebês que assistiam, entusiasmados, o espetáculo dos animais no palco e Jung fazia anotações como seu estagiário e futuro rebelde. Os descobridores do mundo quântico acessaram o porão e ainda  vasculham coisas lá; e assim sobrevivem outros mais no edifício.

É dito que este edifício é como um oceano em Júpiter, deveras infindável para qualquer indivíduo que é lançado sobre ele. Lançado com ancoras nos pés que o puxam infinitamente para baixo, tentando encontrar o chão oceânico mas nunca encontrando. 
#Prosador.

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