sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Peripécias do jovem Nietzsche: o dia em que o jovem calou os piedosos

 


Frederico era um rapaz levado, astucioso em suas maquinações e seu pensamento crítico artimanhoso atropelava intelectuais da velha ordem metafísica. Já em seus vinte e quatro  anos, o jovem andava por detrás da portinhola onde seu tio conversava com seus amigos de fé luteranos. Naquela ocasião era falado sobre o temor a Deus e sua majestade, que esmagava todo rico, forte e poderoso que quisesse se vangloriar de suas riquezas ou poder. Eram três homens de meia idade, e tinham um aspecto que confería-lhes orgulho suficiente para fingir que desprezavam o que os mais jovens ainda brilhavam os olhos: poder e riquezas. 


Eles citavam Jeremias 9:23 e 24, que, paradoxalmente era um motivo de orgulho destes em suas falas de sabedoria sacramental e em suas piedades cínicas. Após um dos cavalheiros dizer que Otto Von Bismarck era um impiedoso que não tinha o temor do Senhor, tornando-se tremendo presunçoso que apenas queria a Alemanha aos seus pés, Nietzsche indignou-se em sua alma. O jovem era tenaz e espreitador o suficiente para saber que ambos defendiam uma Alemanha imperiosa, unificada e expansiva; suas crenças eram apenas uma roupagem elegante de uma moral oblíqua e putrefada como os esgotos a céu aberto das primeiras cidades inglesas do período da Revolução Industrial. 


Se havia algo que o jovem irreverente e desbocado que suportava os purgatórios psicológicos de sua mãe e de sua irmã não tolerava, este algo era a desonestidade dos teólogos: primeiro a autodesonestidade hipócrita; segundo: a desonestidade coletiva e cretina que tornava o homem do século XIX tamanhamente teórico e, sabe-se, decadente! 


 "O que seria isso, senão covardia e medo de assumir a verdade, o que estes velhotes estão fazendo?" quis expressar Nietzsche através  de seu grunhido de desprezo que se fez ouvir por todos após um silêncio taciturno da discussão:    "Ahrr.." 


Então, ao notar que seu grunhido de indignação soou mais alto do que esperava, o jovem perdeu o pouco de pudor que tinha e se pôs às claras na luz da sala. Ao entrar, rasgou em pragmaticidade: "Vocês conversam entre si mesmos falsas virtudes de piedade e valores tão falsos e decadentes que isso me tolhe a discrição. Não puderam enxergam, senhores?"


"Como, jovenzinho?" soltou com ar de surpresa, Frank, amigo do avô do jovem irreverente.  O resto dos senhores que estavam naquela sala não pronunciaram uma palavra, pois já tinham ouvido falar da mania filosófica do rapazote e seu faro epistemológico para julgamento de ideias centrais que formavam a coluna de todo edifício moral. Por isso, apenas o olharam com um olhar que demonstrava um certo misto de admiração velada debaixo do véu de condenação amena. 


Então, Nietzsche proferiu suas máximas: 


Quem não consegue o que deseja, adoece o objeto de desejo para que o fracasso não perturbe a consciência do ente desejoso.  Não percebem? Vós, homens de moral cristã, desejam o bem não porque o desejam de fato, mas porque são arrastados pela má consciência que os admoesta pelas chamas do inferno. Vós quereis desejar o bem, mas se encantam pelo mal.


A bondade do vosso deus é o livramento da punição, não percebem? Não há nada do que se orgulhar a não ser em serem poupados de tamanho extermínio. E com isso o homem não pode se orgulhar em por sua vontade de poder em jogo, tornando-se ativo. Vós,  ao contrário, senhores, são os fiscais reativos do Reino; do Reino daquele deus esquálido aculturado e enfraquecido desde os exílios babilônico e persa. Esse democrata entre os deuses é uma imaginação que estes mesmos alemães a quem vós cometeis o ato de denegrir,  cultuam juntamente com vocês. 


"Ora, moleque... só porque andas a estudar e farejar os livros achas que pode discutir com nossa sabedoria e a soberania de nosso Deus? E ainda me envergonhas na frente de meus camaradas fraternos com esse raciocíniozinho digno de um insolente qualquer como aqueles que andam por aí em prostíbulos e lugares duvidosos. Bem que tua mãe estava certa em tais reclamações sobre teus delírios literários." exaltou o avô, que além de seu antepassado digno de honra, portava sangue de teólogo. 


Então Nietzsche, incomodado com o desprestígio e tamanha desonestidade intelectual do avô por meio de argumentos ad hominem, o encarou com olhos de decepção desprezadora e iniciou um novo raciocínio em tom taciturno e mais melancólico: 


"Um dia desejo o poder, riqueza e as benesses decorrentes de tudo isso e na mesma medida em que tenho e me orgulho de minha sabedoria... sabes por que, nobre avô?


Certamente o avô sabia que a pergunta era retórica e que após breve silêncio, viria um raciocínio sereno e penetrante do jovem Nietzsche que, mais tarde, reconheceria que lhe faltaria ainda as "marcas de ferrugem"  para que fosse levado a sério pela Alemanha, bem como as sonhadas marcas da impossibilidade de acesso, causada pela morte do filosófo, para que este fosse admirado e lido pelo mundo inteiro em mais de uma simples época.


"Porque  é justamente quando tivermos poder, poderemos decidir não usá-lo por pura consciência, como o  deus  do velho testamento de vossas bíblias fazia em algumas ocasiões, quando não se deixava cair no furor e não aniquilava os povos.   Mas os cristãos, sim, vós! Sois parte de uma descendência cultural ressentida que necessita de uma moral de rebanho, bem como fiscais morais. Vós condenais a avareza para que digam não ao perdularismo latente em vós mesmos; vós condenais as mulheres de boa aparência que desfilam sozinhas nas ruas para que vós mesmos não pensem em cair em tentação com elas em bordéis clandestinos; vós não desejais poder e riqueza, pois sabeis que esmagariam os que estivessem debaixo de vossa tutela vingativa. 


O mundo é vontade de poder e o homem deve saber por o melhor de si para fora; ao contrário do que pensais em vosso coração, o homem ativo que se vinga não guarda o rancor que assassina os homens em guerras nacionalistas; um homem irado é um homem disposto a colocar fim em contendas: seja por meio do conflito, seja por meio de uma punição que encerra mais contendas vindouras. Mas vós sois guiados pelos ídolos e a eles reservo meu martelo que ressoará por toda Europa e..."


Mal acabou o jovem a pronunciar estas palavras e seu avô precisou ser contido por seus dois amigos para que não fizesse mal ao rapazote que já não tinha tanta vitalidade física. A mãe e a irmã apareceram após o barulho de gritarias  e vozes que tentavam acalmar a situação constrangedora.


"Novamente, Frederico... novamente? O que falastes dessa vez para que causasse tamanha ira de teu avô...?" perguntou a mãe. 


Ao se virar... não encontrou o rapaz, que tinha saído para espairecer, enquanto se orgulhava em seu coração de ter travado um dos muitos embates desse Ágon intelectual que travaria contra todos os intelectuais,  contaminados pelo sangue de teólogo e pela vã metafísica que deveria ser expurgada da filosofia do século XIX. 


-Gabriel Meiller

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