terça-feira, 25 de junho de 2024

O verme no coração do homem: o ressentimento



Em cada vão dos esconderijos do coração lá  ele está; está lá o verme que clama contra o medo da irrelevância e da solidão. Os vermes precisam de substrato para crescer e se multiplicar, os vermes precisam se alimentar das doces consolações: não do verídico ou do que a amarga verdade pode oferecer, seja lá o que este trocadilho da linguagem cheio de esterco signifique.


 As doces consolações são: o ajuntamento dos vermes que juntos se sentem menos vermes e até poderosos organismos vivos. Um dos substratos contra a verdade e em favor da mentira é o ressentimento. 

Já foi ilustrado e todos sabemos: a verdade não nos interessa como espécie humana, a não ser uma verdade que nos preserve e acalme o medo primitivo do nada, da possibilidade do esquecimento eterno: da inexistência. Todos temem a inexistência pelo fato dela ser inimaginável e por isso o medo e a esperança, como apaziguamento desse medo primitivo, são as duas emoções mais exploradas pelas religiões e por qualquer outro sistema de ajuntamento humano.  Até que ponto a vontade de verdade é verdadeira? Não seria mais correto dizer a vontade do desejo? 

 A mentira (seja lá o que isso for, além é claro, de uma oposição à desconhecida verdade) está unicamente a serviço de algo: do desejo! E o desejo é mais forte do que o próprio prazer, pois o prazer é enjoativo quando excessivo e repetitivo, mas o desejo... é insaciável por natureza porque sempre muda de objeto para objeto. O desejo é niilista porque persegue o interminável e o inexistente: a completa e definitiva realização do prazer que se chama felicidade para alguns.


É do desejo de prazer que bebemos todos os dias, acreditando que a Coca gelada, o aprimoramento de nós mesmos, a riqueza e a vingança (nada melhor do que ver alguém que odiamos se fuder) será a experiência definitiva que nos levará à felicidade.  


Mas o que é felicidade? Eis aí mais um fantasma linguístico junto com a verdade. Eis aí a nossa busca por conceitos tão abstratos quanto Deus. 

Vejam, os seres humanos mantiveram seu hábito próprio de animais instintuais: se abrigam em grupos de todas as naturezas e orientações e pelo menos nisso são mais concretos. Mesmo que essa atitude de arrebanhamento seja para fugir da falta de sentido e para compartilhar o ressentimento desta falta de sentido. 


Quem olha espantado aos documentários sobre o nazismo na Alemanha se pergunta: como puderam apoiar tamanha atrocidade? Mas se estivessem imersos no meio daquela população de ratos com orgulho ferido e repleto de ressentimento, provavelmente se comportariam como saudadores da catástrofe que estava por vir. Aonde a ética foi respeitada naquele caos em que estava a Alemanha? Ali estava valendo o totalitarismo como ferramenta para a mentira consoladora dos alemães: de que eles eram os melhores, de que eram bons; a mentira foi um instinto para ignorar o que sentiam: humilhação e ressentimento pelo cenário pós-Primeira Guerra e pós-Crise de 29. A democracia, outro ideal que visa combater o medo da irrelevância social dos que se submetem ao governo dos poderosos, estava sendo deixada de lado em nome da amargura em serviço do ideal nacionalista doentio. Os ressentidos alemães nazistas preferiram a privação e a guerra que “traria a glória” a eles do que a paz e a irrelevância que os nadificavam perante as demais nações, venerando assim a mentira antissemita e belicosa.


Sendo assim, os movimentos totalitários e seus líderes representam um bando de vermes aglomerados que gritam: com este fascismo (ressentimento compartilhado), seremos mais fortes juntos (“fascismo” advém da palavra latina “fasces” que designava um feixe de varas que juntas não poderiam ser quebradas dentro do simbolismo fascista) e toda lágrima das mazelas anteriores será enxugada; o que muitos não previam era aquele cheiro bem distinto de... carne humana queimada que saia pelas chaminés dos campos de concentração.


 A vingança dos alemães ressentidos gerou mais ressentimento  entre os judeus... e comoção internacional da comunidade que resolveu propiciar a criação do Estado de Israel. Mas as sementes do ressentimento que germinaram no coração judaico foram foram transferidas ao coração palestino. O ressentimento é a poderosa semente que cai em terras áridas e germina de forma próspera; os russos que o digam. Bem verdade é que ainda estão dizendo e ainda dizerão de forma ainda mais contumaz.


   Mais primitivamente, entretanto, a afirmação de ressentimento se condensou nas religiões: os sacrifícios humanos como oferta aos deuses em troca de prosperidades da Terra; os cultos para manter as divindades próximas das sociedades por meio de mais sacrifícios; a submissão carrasca do corpo ao elevado espírito que era eterno. O que era tudo isso senão medo do mundo desconhecido que, sem a figura dos deuses, não teria um consolo explicativo? Preferia-se acreditar que a Terra dava seus frutos por meio do derramamento de sangue como moeda de troca a um(a) deus(a) do que ficar na escuridão da dúvida e da ausência de explicação do caótico mundo e seu funcionamento misterioso. Todo o uso de crenças-ideológicas como máquina de guerra é um sintoma do coração humano: ali há fraqueza e reafirmação ressentida. A violência sistemática é uma reação advinda de um medo específico. E que medo é esse? É o medo da irrelevância e da falta de sentido. 


-Gabriel Meiller

domingo, 23 de junho de 2024

O abismo da subjetividade entre "nós" e o "mundo"

 


A terceira ferida narcísica imputada à humanidade (ou melhor: humanivaidade) foi desferida psicanaliticamente por Freud. Embora, devamos ser justos aqui: a noção de vários eus que lutam contra si mesmos e causam conflitos no indivíduo tenha vindo das considerações filosóficas de Nietzsche. 


Entretanto, mais conhecidamente em Freud podemos dizer que a terceira ferida imputada à humanidade foi essa noção de que somos limitados em nossa visão de mundo e corrompidos por nossas fantasias e, no caso dos traumas, dos fantasmas! 


 Nossa tão ilustre razão, ou melhor, nossa fantasia de racionalidade como guia para a vida, foi devastada sistemáticamente após o fracasso do positivismo como crença de que a razão e a ciência  levaria ao progresso moral da humanidade. 


Se a nivel societal essa constatação é evidente, talvez no nível individual ela seja mais sorrateira e pouco entendida. Empiricamente e de forma consciente acreditamos que nossas percepções do "externo" são objetivas e exatas. Entretanto, enxergamos o mundo, como demonstrou a noção psicanalítica, por meio das nossas experiências gerais da infância e da adolescência. Por que certas pessoas simplesmente não gostam de outras antes mesmo de se conhecerem? Sabe aquela pessoa que olha para a cara da outra e simplesmente decide não gostar, como um ódio à primeira vista? Isso é uma evidência de que as "lentes" do indivíduo que odeia são previamente determinadas; tal pessoa odiada pode lembrar, no banco de memória inconsciente daquele que odeia, uma pessoa que passou por sua vida e lhe fez mal. 


Essa associação inconsciente é muito comum já que nosso cérebro possui padrões associativos sofisticados. O clássico exemplo da esposa que parece a mãe do marido é conhecido por muitos: ela pode lembrar a mãe de seu marido pela sua personalidade mais ativa ou retraída, bem como por alguma feição física ou por possuir algum objeto, propriedade que a mãe daquele possuía. Nossos pais (ou quem faz a função paterna  e materna em nossa vida infantil) são os primeiros modelos de nossa sexualidade. A mãe de um homem sugestiona perfis psicológicos que ele pode querer ou não na vida adulta: ela pode ser uma referência de mulher que ele não desejaria, bem como uma referência que ele desejaria (no contexto de um filho heterossexual). 


Nossa visão de mundo pode ser distorcida de forma mais radical por meio dos fantasmas, que seriam traumas passados que modificam nossa percepção do mundo muito além do que uma pessoa regida por suas fantasias teria em questão de intensidade. Uma pessoa que sofreu ou levou determinadas situações como um abandono pode distorcer muito mais um acontecimento do que em outras  pessoas. Algum amigo que simplesmente se atrasa para se encontrar com este indivíduo traumatizado pode gerar nele especulações extremas, como: será que ele se atrasou porque não estava afim de me ver? Será que ele não está interagindo porque não gostou do lugar que eu escolhi? 


Em resumo: há um abismo entre o mundo exterior e nossa interpretação desse mundo exterior somente na dimensão da fantasia. E na dimensão do fantasma essa distorção aumenta de forma avassaladora. Não somos, de forma alguma, senhores em nossa própria casa e somos um reflexo de muitas variáveis que nos habitam de forma ininterrupta. 


-Gabriel Meiller 



sexta-feira, 14 de junho de 2024

A política da fé dos melhoradores da humanidade

 

Se existe algo que move a humanidade, inclusive para o inferno existencial, é a esperança! A esperança pode se tornar obstinada em qualquer direção e disposta a qualquer atitude: as mais automartirizantes e sacrificiais, tanto quanto as atitudes horripilantes e de genocídio. Certamente Hitler se via como melhorador da humanidade, assim como Mahatma Gandhi. "Desconfie dos melhoradores da humanidade" adverte a razão e os próprios instintos, "pois eles sabem que quem muito quer vender seu peixe, sabe que ele está para vencer e estragar a qualquer momento."


O que dizer da política? Ela é um veículo de poder para que o homem mude a realidade da comunidade ao seu redor. A política é a administração da pólis, isto é, das cidades e países em geral. Entretanto, a política também é um caminho subterrâneo para a administração e usufruto das benesses do poder em proveito pessoal. O homem é seduzido pelo poder que a política lhe oferece, concedendo-lhe: influência, dinheiro e prestígio perante a sociedade. 


Os melhoradores da humanidade podem muito bem desejar e ter desejado um dia a mudança da humanidade, ou pelo menos de parte da sociedade; mas não se enganem, senhores: a ingenuidade é a barra de ignição para o bem, mas a sedução do poder altera o estado mental humano até o ponto em que a utopia e o desejo de mudar a sociedade se torna um pálido reflexo da ingenuidade sadia do cidadão que um dia assumiu o poder. Querem exemplos, ainda? Napoleão, Stalin, Lênin, Hitler, Mussolini;  Getúlio Vargas, Lula, Fernando Henrique Cardoso (o sociólogo acadêmico que no poder praticou tudo diferente do que escrevia), Collor,  e o seu Edmilson que era pobre, ferrado e abriu uma empresa e agora quer distância do populacho e vive em uma casa financiada na parte nobre da cidade. A corrupção, ao contrário de Edmilson, não faz acepção de classes sociais e é por esse motivo que o anarquismo criticou a ditadura do proletariado e a transição do Estado proletário para uma sociedade sem classes: ela não funcionaria e... se funcionasse algum dia, no dia seguinte ou, no mais tardar, na semana que vem... o mundo estaria hierarquizado novamente! 


Quem representa a política da fé? Óbviamente quem se interessa em fazer revoluções e mudar o status quo em que os donos do poder tanto se agradam. Mas a política da fé peca! Não por sua intenção, mas por sua ilusão e ingenuidade em seus métodos. Karl Marx analisou de forma magistral toda a opressão que o ser humano cometia por meio das engrenagens capitalistas, isso é verdade! Entretanto, o erro marxiano e dos marxistas se baseia na crença de que a humanidade pode se redimir e caminhar para a abolição da luta de classes e do Estado. Ah... doce e amarga ilusão para os que se desenlaçam dessa semirreligião marxista! Sim, nas ciências da religião o marxismo possui traços em comum com as religiões e por isso, junto com outras ideologias, ele se enquadra na definição de semirreligião. 


Além desse erro de supervalorização na razão humana como capaz de redimir o homem e domar seus instintos predatórios de acumulação e luta contra o outro, o marxismo cai no erro que Nietzsche tanto criticava, não somente nas ideologias de esquerda, mas na filosofia de sua época: a metafísica presente nas ciências e na filosofia. A metafísica compartilha o pressuposto de que o mundo é consequência de um plano perfeito,  imutável e de que essências fixas desse mundo existem em nosso plano. O conceito de alma e a noção de um Eu fixo que comanda todas as nossas funções e nosso corpo é uma consequência da metafísica de forma geral. O marxismo, decorrente de influências hegelianas não escapa desse fatalismo que abateu a filosofia. O crente no materialismo histórico e dialético compartilha o pressuposto do paraíso na Terra. O marxismo enxotou o conceito de deus e ficou com as consequências lógicas dele: a justiça, paz e harmonia que seriam da "era vindoura" que o cristianismo tanto pregava.  "Um ateísmo cristão?" Se espanta quem cava a fundo e observa atentamente as movimentações conceituais marxistas. São ateus cristãos sem deus, devotos do espírito do cristianismo primitivo sem a referência metafísica dos ídolos do cristianismo.  Revolucionários do "Cntrl C, Cntrl V" que se entusiasmaram pelo culto à igualdade por meio da ditadura do proletariado. 


Quando falamos sobre luta de classes, o congelamento entre "opressor" e "oprimido" é mais um sinal de uma metafísica viva e operante no materialismo dialético e no marxismo. Os seus devotos operam como apóstolos da luta contra a opressão, reivindicadores e profetas da igualdade. Pois bem, senhores: vossa causa é justa, mas não atropelem os próprios cavalos que carregam vossa carroça. 


Resumindo tudo em uma premissa ceticista: a realidade sempre estará quilômetros à frente da razão humana e de qualquer tentativa do homem em controlá-la e entendê-la de forma integral. O progresso e a mudança possuem limites... mesmo que não saibamos ao certo quais são esses limites. 


-Gabriel Meiller

terça-feira, 11 de junho de 2024

A filosofia de um filólogo

 



Havia um tempo em que o homem gostava de filosofar e que a filosofia era sinônimo de refinamento do senso comum. Haviam tempos em que o refinamento intelectual de alguns homens significava tornar as premissas bíblicas mais palatáveis à razão por meio de erudição teleológica. A filosofia, então, passou a ser associada a uma escola dominical de rebentos descolados demais para irem aos cultos, mas corajosos de menos para questionar as premissas metafísicas fundamentais daquela sociedade, visto que questionar aquelas premissas significava questionar as suas próprias origens. 


Vocês conhecem algum conhecido que é sensato demais para não seguir a risca o fundamentalismo cristão, mas covarde demais para desconstruir a moral cristã em seus fundamentos? Ele mantém a crença de que Deus criou o mundo e que ama a humanidade; acredita que Jesus e outros líderes foram importantes no progresso moral da humanidade... mas não assume a crença de forma integral. Ele não se priva do sexo antes do casamento, ele fuma, bebe e vai em festas... esse conhecido é o exemplo de um homem covarde! Digo mais e de forma vernácula: ele(a) é um cuzão(cuzona). Não fede, nem cheira; nem quente, nem frio... vomitável! 


Pois bem... no século XIX vários desses conhecidos filósofos europeus estavam fazendo da Europa um lugar que cultuava o adiamento da morte de Deus.  Eles gostavam de acreditar nas doces consolações da religião cristã, ou de pelo menos sustentar algum teísmo aceitável; os filósofos construiam seus argumentos com base no vontade de acreditar em algo que os consolasse: assim fez Kant e os idealistas alemães. Era uma filosofia como reafirmação e reciclagem do que estava obsoleto; uma reforma da metafísica por meio do culto ao não falseável como sinal da existência da verdade eterna! "Ausência de evidência não é evidência de ausência!" repetiam frenéticamente os desesperados por sentido. Oh, coitados! 


Então um filólogo surgiu com a árdua tarefa de ressignificar o sentido da palavra "filosofia" aos demais filósofos. A filologia foi de especial utilidade para a filosofia; o estudo dos rastros da mentalidade humana expressa nas palavras é uma ferramenta imprescindível ao filósofo. As palavras são fontes históricas imateriais, mais do que documentos oficiais que afirmam dizer supostas verdades por meio de um idioma. Uma história das mentalidades da humanidade transita pelos significados que ela dá ao mundo e a si mesma por meio das palavras e de suas modificações nos inúmeros idiomas. É por isso que um filólogo do século XIX teve vocação para a filosofia mais do que os próprios filósofos: ele aprendeu a rastrear o nascimento das morais, ideias e da psiquê humana. 


Se Freud desenvolveu a  psicanálise (a análise por meio da fala/discurso) foi porque antes dele veio um analista por excelência: o analista do discurso coletivo! Nietzsche analisava as morais das sociedades e dissecava a origem das palavras de muitos idiomas. Em Genealogia da Moral e Além do bem e do Mal é notável como o dissecamento etimológico o permite concluir a diferença da moral dos nobres e moral dos escravos.  O bom e o ruim; o bom e o mau; são máximas de sua análise investiga a moral por trás de cada classe social. Os nobres consideravam como "bom" aquilo que eles faziam e honravam: a tradição, o antigo, o igual; "bom" era tudo aquilo que era feito e produzido por eles mesmos. Eles, os ativos e criadores de valores, eram a referência do bom, ou seja, do que era nobre! Já o "ruim" era tudo o que não era igual a eles, isto é, o desprezível, o escravo, o forasteiro, o "não nobre". 


Essa lógica se inverte quando os escravos moralizavam o mundo: "mau" é tudo o que é nobre, tudo o que é bom na visão do nobre, isto é: tudo o que é agressivo, tudo o que representa riqueza, esbanjamento, perigo e domínio. Apenas o que é inofensivo, pacífico, misericordioso é considerado bom para a moral dos escravos, isto é, daqueles que estão em opressão. Essa observação nietzschiana em uma época de filósofos dogmáticos foi um grande achado: entender que as morais e o conceito de bem e mal são criações humanas de inúmeras classes e sociedades. De que o bem absoluto não existe e de que a Bíblia também é uma construção humana, demasiada humana e produto de uma sociedade específica: uma sociedade de cativos que viveram como escravos em muitos exílios e que também pensavam pela moral dos escravos. O Deus judaico-cristão, inevitavelmente, era uma construção e projeção de um povo aflito por exílios e domínios de outros povos. Por isso, o Deus cristão foi idealizado com todas as características que o povo judeu escravizado desejava que os demais povos tivessem demonstrado para com eles: um Deus misericordioso, bondoso, complacente... um democrata entre os deuses! 


Esta é a filosofia de um filólogo: refinada e sutil para rastrear a evolução das morais humanas ao decorrer do tempo.  O olhar típico de um historiador, isto é, daquele que que estuda a criação das morais, é cético  à moral eterna pelo fato de que possui consciência de que tudo nasce, se desenvolve e um dia morre. A premissa de que algo sempre existiu e sempre existirá é abraçada pelos "filósofos" da metafísica, pelos amantes do que não é falseável.


-Gabriel Meiller

quinta-feira, 6 de junho de 2024

O âmago da filosofia de Nietzsche em "Além do bem e do mal": o varredor da metafísica filosófica.

 




 

Nietzsche é conhecido na filosofia pelo seu senso de humor provocativo e pelo seu perspectivismo, muitas vezes confundido pelos leigos e preconceituosos como uma contradição inerente do autor. O perspectivismo nietzschiano é a constatação de que a realidade possui verdades plurais e complexas demais para que alguém possa afirmar de forma convicta que sabe de algo.


Nietzsche começa a primeira parte de seu livro como se fosse um Sócrates 2.0, visando confundir seus "adversários" por meio de perguntas. Nietzsche critica muitos pressupostos considerados verdadeiros pela tradição filosófica Ocidental, como: a noção de um Eu racional e imutável, como quis o cartesianismo por meio da simbologia "Penso, logo existo". Essa frase coloca e reafirma a supremacia da razão sobre os demais sentidos, como se a verdade fosse subjugada e pertencente à razão e como se as emoções não fizessem parte dos julgamentos. O que Descartes fez senão sofisticar o platonismo milenar? Essa é a crítica de Nietzsche: Descartes continuou mantendo as premissas do pensamento metafísico na filosofia ao acreditar que o pensar é produto de um Eu racional e imutável (assim como Deus), mantendo o dualismo presente na filosofia da época: de que há um Eu de um lado e o mundo de outro,  dando a entender que nós e o mundo somos separados. 


Nietzsche questiona os filósofos por não serem críticos tanto quanto costumavam acreditar. Ele os acusa de  filosofar com base em suas crenças pessoais e sem questioná-las. A oposição entre conceitos, uma valiosa premissa da metafísica, é cultuada entre aqueles filósofos: a verdade como oposição à mentira; a justiça à injustiça; o bem ao mal; o egoísmo ao altruísmo... como se fossem conceitos separados e opostos intrínsecamente entre si mesmos. 


Mas será que também não há egoísmo no altruísmo, ou será mesmo que há possibilidade de existir o altruísmo sem o egoísmo?  Freud posteriormenre irá mostrar que tudo é obra do ego, ou seja, tudo seria "egoísmo" e tudo teria interesses próprios em gratificação pessoal: sejam interesses conscientes ou inconscientes.  E se esses conceitos "opostos" forem uma mesma característica empregada em lados diferentes? E se forem vistos de forma diferente de acordo com o julgamento de cada pessoa? E se o egoísmo for tão fundamental e importante quanto o altruísmo?  E qualquer um que esteja disposto a pensar nessas críticas, seria como um filósofo perturbado pela ironia socrático-nietzschiana. 


O que Nietzsche estava querendo fazer na primeira parte de seu livro? Ele almejava expurgar o parasita metafísico que se infiltrou na filosofia, tornando-a  um cadáver putrefado pelo conflito de interesses. Muitos filósofos estavam dispostos a reafirmar suas crenças por argumentos  eruditos ao invés de proceder pelo questionamento cruel das velhas verdades do senso comum.


 O expurgo nietzschiano da filosofia almejava demolir as premissas não falseáveis do idelismo filosófico, principalmente por meio da crítica a Kant. O pressuposto de algo fixo e imutável deveria ser varrido para sempre do ofício do filósofo. O fixo e imutável, o nômeno, Deus, a eternidade... todos esses "pré-juízos" eram inimigos da busca às verdades da existência. Nietzsche começa o livro ridicularizando os filósofos dogmáticos ao dizer:


"Supondo que a verdade seja uma mulher, não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres?" 


Poderíamos parafraseá-lo, dizendo: "Vocês nerds inteligentinhos não pegam nem mulher, nem a verdade; são péssimos em pegar qualquer uma dessas coisas, porque não sabem como se aproximar delas!"


Nietzsche era um comediante, alguém que sabia que a despretensão filosófica era a chave do conhecimento: a despretensão ocorria no fato de que suas críticas e sua filosofia não pretendiam construir algo definitivo, mas consistiam muito mais em questionar o que os demais pensavam ser A Verdade definitiva. Nietzsche foi o verdadeiro Sócrates que deu certo ao reconhecer a existência como ela é: complexa e incerta ao olhar perspectivista humano! 


-Gabriel Meiller

quarta-feira, 5 de junho de 2024

O excesso de ideologia como vício identitário

 


Um punhado de ideologia e o bando se reúne; dois punhados de ideologia e ele se secciona em guetos. Ideologia é o cadáver morto da filosofia e o niilismo a esperança de quem teve relações sexuais com esse cadáver. 


O niilismo é a negação da vida e o desprezo dela por inúmeras formas criativas. Já repararam no homo-ideólogos? Ele examina bem cada palavra, cada confissão que o outro faz e se atenta a repreendê-lo como um fiscal epistemológico, como um cão de guarda da Verdade. Mal sabe ele que vive pela sua verdade, enquanto os outros vivem pelas demais e isso nunca mudará. Aonde está a verdade verdadeira e quem pdoe defini-la? A incapacidade de responder essa pergunta sem soar ridículo demonstra a fragilidade do homem diante da existência como uma complexidade epistemológica irreconciliável. 


O ideólogo cai num tipo de niilismo bem peculiar, como se fosse uma mistura entre o ativo (a reafirmação de uma ideologia) e o passivo (negação de todos os demais ideais que não coadunam com esse ideal). O ideólogo torce os conceitos na maioria das vezes para que eles caibam em seu mundo idealizado que prega sobre "como o mundo deveria ser".   E então a filosofia como postura cética que questiona para se aproximar de alguma intuição/noção (mesmo que subjetiva) de "verdade",  é sacrificada em prol de um bom motivo para se morrer, como diria Albert Camus. Pois um bom motivo para  viver, também é um bom motivo para se morrer, ou melhor, para tirar a própria vida em ato de desespero. 


Mas para que tanta ideologia? Alguém perguntaria, desconfiando que no fundo sabe e também pratica isso. E a resposta ressoa de dentro: para sua autoafirmação diante do mundo! Seja uma ideologia por meio de argumentos racionais e eruditos, seja uma ideologia encarnada em práticas concretas que exibem força, poder e autoridade. "A vida é vontade de poder", disse Nietzsche. O que é a vontade de poder? Ela significa literalmente: um desejo ativo de poder fazer algo, isto é, colocar sua vontade, seu controle no mundo, alterando a realidade. O ser humano gosta da sensação de controlar e modificar o mundo, assim como um artista gosta de esculpir/criar algo e ver o quão prazeroso isso foi pelo fato de ter sido obra sua! 


Essa vontade de poder, porém, faz da humanidade o que ela é: uma luta de forças constantes e contrárias. Aos ideólogos que insistem em fazer da humanidade um lugar melhor, desejo-lhes força para vencer as próprias frustrações decorrentes do adiamento constante e infinito dessa esperança provavelmente ingênua. A humanidade com sua teimosia tem muito mais a ver com apreciação, choque, espanto e admiração do que: controle, luta de classes, transformação, etc. A humanidade é o feitiço lançado pelo feiticeiro e que saiu de controle há muito tempo


-Gabriel Meiller.

domingo, 2 de junho de 2024

A fraqueza do homem e Deus como seu sintoma

 

O que é Deus? Essa pergunta não tem resposta certa e absoluta; então a resposta mais adequada deveria ser: não se sabe.  Mas como todos gostam de cultivar a sua verdade e brincar de desvendar o cosmos, posso me arrogar a trazer pareceres lógicos com base nas ciências e na filosofia: Deus é a necessidade e o sintoma que vem da fraqueza humana. 


O apóstolo Paulo trouxe a máxima que supostamente ouviu de Deus: "Minha graça é suficiente para você, pois meu poder se aperfeiçoa na fraqueza." 


"Fraqueza" é a palavra adequada, senhoras e senhores. É pelo medo da morte, de tomar decisões e criar novos valores que o homem é fraco. A fraqueza impele-o para o niilismo cristão. O que é niilismo? É o desamor à vida, o desprezo a ela em várias instâncias.  E o niilismo cristão nasce justamente dessa fraqueza: o medo de viver e de aceitar o mundo como ele é: finito e temporário. É nessa fraqueza que o poder de Deus (ou deuses) se fortalece e o ser humano monta a sua fábrica de ídolos monoteístas e politeístas por meio das religiões. 


O que o cristianismo, ou melhor, o niilismo cristão prega? Que essa vida é transitória e inferior à vida vindoura: 


 "Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam"; disse a Escritura. 


O que é esta vida perto da vida que virá e que é eterna? Nada. O que é este corpo finito perto do corpo "glorioso" e eterno que virá? Nada. E então o cristianismo incrementou esse niilismo com o platonismo que também prega que esse mundo dos sentidos em que estamos é imperfeito e que o mundo inteligível, o mundo das ideias (para o cristianismo, o mundo espiritual) é o mundo que mais importa. 


O cristianismo assaltou o platonismo e o plagiou de forma cruel para se sofisticar cada vez mais. E se o mundo posterior é o mais importante... essa vida aqui não merece tanta atenção e os instintos, as obras da carne, devem ser renunciadas. A vida é levada em banho maria em prol de um futuro incerto. Há um cheiro bem específico aqui: o medo de viver e de escolher por si mesmo! 


Mas para o homem forte, aquele que escolhe por si e cria seus próprios valores, Deus pode ser qualquer coisa, inclusive: nada! Que sejamos fortes para que em nós Deus e seus representantes não nos assaltem em nada, principalmente no amor à vida e na possibilidade de montarmos os nossos próprios valores. Sejam eles "bons", sejam "ruins". 


Sem mais: carrego em mim as marcas de Cristo; e essas marcas são inúteis e desnecessárias. Que os fiscais de Deus carreguem como camelos as normas do livro sagrado, mas não se oponham aos que preferem ser livres, verdadeiramente livres do peso do niilismo cristão em um Estado despretensiosamente laico.


-Gabriel Meiller

sábado, 1 de junho de 2024

O apagamento das divisórias e a burlagem do gosto pelo absoluto


Existem linhas... daquelas semelhantes às linhas imaginárias que formam coordenadas geográficas. Os trópicos de câncer, de capricórnio e a linha do equador sociais são os nossos costumes morais que norteiam o que somos enquanto sociedade. E as chamadas divisórias são as linhas de limite entre o que é nosso e o que é do outro; o aceitável e o inaceitável.


Somos uma construção refinada de muitas morais que foram aculturadas em nosso íntimo e que formaram linhas divisórias bem delineadas. Somos emoções complexas  que são resultado de diversos ensinos, crenças e vivências. A forma de amar,  ler e sentir o mundo de forma particular foi impressa nas profundezas de nossa psiquê e mesmo que posteriormente passemos por mudanças  que alterem radicalmente a nossa identidade, as camadas dos velhos eus ficarão sedimentadas em nós de forma permanente. 


"Tudo é disposto de forma que o pior gosto, o gosto do absoluto, seja cruelmente burlado e profanado até que o homem aprenda a colocar um pouco de arte em seus sentimentos..." 


O gosto do absoluto é o que nos faz criar divisórias não somente entre nós e o outro, mas entre nós e os nossos diversos eus antigos. Não somos um eu harmônico, mas uma somatória e uma amálgama de diversos eus. E quando aprendemos a colocar arte em nossos sentimentos, convivendo com nossas contradições, não opondo a verdade à mentira, o egoísmo ao altruísmo, a agressividade à passividade e o nosso bem ao nosso mal... então nós derrubamos essas divisórias artificiais que segmentam nossos eus e nos tornam pobres em sentimento e em humanidade. 


O apagamento dessas divisórias é um convite a vivenciar de forma plena a vida que em si é plural e complexa.


Hoje eu estava andando na praia e ouvindo música e então a nostalgia das músicas de infância/ adolescência emergiu. Antes de ter derrubado essa divisória eu nem sequer me atreveria a escutar  e cantar aquelas músicas. Eram músicas gospel da Oficina G3 e de um eu que hoje já não pensa pelas categorias metafísicas (isto é, acreditando num ser superior que criou o mundo e ama o ser humano). Mas aquele eu de décadas passadas ainda vive nos escombros das amálgamas da minha totalidade. Por esse motivo eu o convidei a ressurgir. Ouvi e cantei as músicas que representam as crenças que um dia eu já tive, sentindo a nostalgia e as implicações passadas daquele eu.  Ao fazer isso eu entendi que isso também é ser historiador: historiador da minha própria vida. 


As crenças metafísicas são um lado meu que não pode e nem deve ser apagado, mas rememorado e acolhido pelos demais eus. Essa é a beleza do fim das divisórias, da queda dos muros de berlim, do fim das oposições que criam o bem e o mal.  E nesse ato eu faço, assim, as pazes comigo mesmo e com o meu passado sem ter raiva do que fui e sendo feliz por quem sou hoje. Embora eu não me reconheça mais como teísta, crente ou religioso, entendo a força desse universo que me fez mais forte ao quase ter me matado. Pois o caos interno que cria uma estrela dançante, também forja verdadeiros diamantes e nuances internas que fazem da vida o que ela é: complexa e misteriosa. 


-Gabriel Meiller