Existem linhas... daquelas semelhantes às linhas imaginárias que formam coordenadas geográficas. Os trópicos de câncer, de capricórnio e a linha do equador sociais são os nossos costumes morais que norteiam o que somos enquanto sociedade. E as chamadas divisórias são as linhas de limite entre o que é nosso e o que é do outro; o aceitável e o inaceitável.
Somos uma construção refinada de muitas morais que foram aculturadas em nosso íntimo e que formaram linhas divisórias bem delineadas. Somos emoções complexas que são resultado de diversos ensinos, crenças e vivências. A forma de amar, ler e sentir o mundo de forma particular foi impressa nas profundezas de nossa psiquê e mesmo que posteriormente passemos por mudanças que alterem radicalmente a nossa identidade, as camadas dos velhos eus ficarão sedimentadas em nós de forma permanente.
"Tudo é disposto de forma que o pior gosto, o gosto do absoluto, seja cruelmente burlado e profanado até que o homem aprenda a colocar um pouco de arte em seus sentimentos..."
O gosto do absoluto é o que nos faz criar divisórias não somente entre nós e o outro, mas entre nós e os nossos diversos eus antigos. Não somos um eu harmônico, mas uma somatória e uma amálgama de diversos eus. E quando aprendemos a colocar arte em nossos sentimentos, convivendo com nossas contradições, não opondo a verdade à mentira, o egoísmo ao altruísmo, a agressividade à passividade e o nosso bem ao nosso mal... então nós derrubamos essas divisórias artificiais que segmentam nossos eus e nos tornam pobres em sentimento e em humanidade.
O apagamento dessas divisórias é um convite a vivenciar de forma plena a vida que em si é plural e complexa.
Hoje eu estava andando na praia e ouvindo música e então a nostalgia das músicas de infância/ adolescência emergiu. Antes de ter derrubado essa divisória eu nem sequer me atreveria a escutar e cantar aquelas músicas. Eram músicas gospel da Oficina G3 e de um eu que hoje já não pensa pelas categorias metafísicas (isto é, acreditando num ser superior que criou o mundo e ama o ser humano). Mas aquele eu de décadas passadas ainda vive nos escombros das amálgamas da minha totalidade. Por esse motivo eu o convidei a ressurgir. Ouvi e cantei as músicas que representam as crenças que um dia eu já tive, sentindo a nostalgia e as implicações passadas daquele eu. Ao fazer isso eu entendi que isso também é ser historiador: historiador da minha própria vida.
As crenças metafísicas são um lado meu que não pode e nem deve ser apagado, mas rememorado e acolhido pelos demais eus. Essa é a beleza do fim das divisórias, da queda dos muros de berlim, do fim das oposições que criam o bem e o mal. E nesse ato eu faço, assim, as pazes comigo mesmo e com o meu passado sem ter raiva do que fui e sendo feliz por quem sou hoje. Embora eu não me reconheça mais como teísta, crente ou religioso, entendo a força desse universo que me fez mais forte ao quase ter me matado. Pois o caos interno que cria uma estrela dançante, também forja verdadeiros diamantes e nuances internas que fazem da vida o que ela é: complexa e misteriosa.
-Gabriel Meiller
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