Em cada vão dos esconderijos do coração lá ele está; está lá o verme que clama contra o medo da irrelevância e da solidão. Os vermes precisam de substrato para crescer e se multiplicar, os vermes precisam se alimentar das doces consolações: não do verídico ou do que a amarga verdade pode oferecer, seja lá o que este trocadilho da linguagem cheio de esterco signifique.
As doces consolações são: o ajuntamento dos vermes que juntos se sentem menos vermes e até poderosos organismos vivos. Um dos substratos contra a verdade e em favor da mentira é o ressentimento.
Já foi ilustrado e todos sabemos: a verdade não nos interessa como espécie humana, a não ser uma verdade que nos preserve e acalme o medo primitivo do nada, da possibilidade do esquecimento eterno: da inexistência. Todos temem a inexistência pelo fato dela ser inimaginável e por isso o medo e a esperança, como apaziguamento desse medo primitivo, são as duas emoções mais exploradas pelas religiões e por qualquer outro sistema de ajuntamento humano. Até que ponto a vontade de verdade é verdadeira? Não seria mais correto dizer a vontade do desejo?
A mentira (seja lá o que isso for, além é claro, de uma oposição à desconhecida verdade) está unicamente a serviço de algo: do desejo! E o desejo é mais forte do que o próprio prazer, pois o prazer é enjoativo quando excessivo e repetitivo, mas o desejo... é insaciável por natureza porque sempre muda de objeto para objeto. O desejo é niilista porque persegue o interminável e o inexistente: a completa e definitiva realização do prazer que se chama felicidade para alguns.
É do desejo de prazer que bebemos todos os dias, acreditando que a Coca gelada, o aprimoramento de nós mesmos, a riqueza e a vingança (nada melhor do que ver alguém que odiamos se fuder) será a experiência definitiva que nos levará à felicidade.
Mas o que é felicidade? Eis aí mais um fantasma linguístico junto com a verdade. Eis aí a nossa busca por conceitos tão abstratos quanto Deus.
Vejam, os seres humanos mantiveram seu hábito próprio de animais instintuais: se abrigam em grupos de todas as naturezas e orientações e pelo menos nisso são mais concretos. Mesmo que essa atitude de arrebanhamento seja para fugir da falta de sentido e para compartilhar o ressentimento desta falta de sentido.
Quem olha espantado aos documentários sobre o nazismo na Alemanha se pergunta: como puderam apoiar tamanha atrocidade? Mas se estivessem imersos no meio daquela população de ratos com orgulho ferido e repleto de ressentimento, provavelmente se comportariam como saudadores da catástrofe que estava por vir. Aonde a ética foi respeitada naquele caos em que estava a Alemanha? Ali estava valendo o totalitarismo como ferramenta para a mentira consoladora dos alemães: de que eles eram os melhores, de que eram bons; a mentira foi um instinto para ignorar o que sentiam: humilhação e ressentimento pelo cenário pós-Primeira Guerra e pós-Crise de 29. A democracia, outro ideal que visa combater o medo da irrelevância social dos que se submetem ao governo dos poderosos, estava sendo deixada de lado em nome da amargura em serviço do ideal nacionalista doentio. Os ressentidos alemães nazistas preferiram a privação e a guerra que “traria a glória” a eles do que a paz e a irrelevância que os nadificavam perante as demais nações, venerando assim a mentira antissemita e belicosa.
Sendo assim, os movimentos totalitários e seus líderes representam um bando de vermes aglomerados que gritam: com este fascismo (ressentimento compartilhado), seremos mais fortes juntos (“fascismo” advém da palavra latina “fasces” que designava um feixe de varas que juntas não poderiam ser quebradas dentro do simbolismo fascista) e toda lágrima das mazelas anteriores será enxugada; o que muitos não previam era aquele cheiro bem distinto de... carne humana queimada que saia pelas chaminés dos campos de concentração.
A vingança dos alemães ressentidos gerou mais ressentimento entre os judeus... e comoção internacional da comunidade que resolveu propiciar a criação do Estado de Israel. Mas as sementes do ressentimento que germinaram no coração judaico foram foram transferidas ao coração palestino. O ressentimento é a poderosa semente que cai em terras áridas e germina de forma próspera; os russos que o digam. Bem verdade é que ainda estão dizendo e ainda dizerão de forma ainda mais contumaz.
Mais primitivamente, entretanto, a afirmação de ressentimento se condensou nas religiões: os sacrifícios humanos como oferta aos deuses em troca de prosperidades da Terra; os cultos para manter as divindades próximas das sociedades por meio de mais sacrifícios; a submissão carrasca do corpo ao elevado espírito que era eterno. O que era tudo isso senão medo do mundo desconhecido que, sem a figura dos deuses, não teria um consolo explicativo? Preferia-se acreditar que a Terra dava seus frutos por meio do derramamento de sangue como moeda de troca a um(a) deus(a) do que ficar na escuridão da dúvida e da ausência de explicação do caótico mundo e seu funcionamento misterioso. Todo o uso de crenças-ideológicas como máquina de guerra é um sintoma do coração humano: ali há fraqueza e reafirmação ressentida. A violência sistemática é uma reação advinda de um medo específico. E que medo é esse? É o medo da irrelevância e da falta de sentido.
-Gabriel Meiller
Nenhum comentário:
Postar um comentário