A terceira ferida narcísica imputada à humanidade (ou melhor: humanivaidade) foi desferida psicanaliticamente por Freud. Embora, devamos ser justos aqui: a noção de vários eus que lutam contra si mesmos e causam conflitos no indivíduo tenha vindo das considerações filosóficas de Nietzsche.
Entretanto, mais conhecidamente em Freud podemos dizer que a terceira ferida imputada à humanidade foi essa noção de que somos limitados em nossa visão de mundo e corrompidos por nossas fantasias e, no caso dos traumas, dos fantasmas!
Nossa tão ilustre razão, ou melhor, nossa fantasia de racionalidade como guia para a vida, foi devastada sistemáticamente após o fracasso do positivismo como crença de que a razão e a ciência levaria ao progresso moral da humanidade.
Se a nivel societal essa constatação é evidente, talvez no nível individual ela seja mais sorrateira e pouco entendida. Empiricamente e de forma consciente acreditamos que nossas percepções do "externo" são objetivas e exatas. Entretanto, enxergamos o mundo, como demonstrou a noção psicanalítica, por meio das nossas experiências gerais da infância e da adolescência. Por que certas pessoas simplesmente não gostam de outras antes mesmo de se conhecerem? Sabe aquela pessoa que olha para a cara da outra e simplesmente decide não gostar, como um ódio à primeira vista? Isso é uma evidência de que as "lentes" do indivíduo que odeia são previamente determinadas; tal pessoa odiada pode lembrar, no banco de memória inconsciente daquele que odeia, uma pessoa que passou por sua vida e lhe fez mal.
Essa associação inconsciente é muito comum já que nosso cérebro possui padrões associativos sofisticados. O clássico exemplo da esposa que parece a mãe do marido é conhecido por muitos: ela pode lembrar a mãe de seu marido pela sua personalidade mais ativa ou retraída, bem como por alguma feição física ou por possuir algum objeto, propriedade que a mãe daquele possuía. Nossos pais (ou quem faz a função paterna e materna em nossa vida infantil) são os primeiros modelos de nossa sexualidade. A mãe de um homem sugestiona perfis psicológicos que ele pode querer ou não na vida adulta: ela pode ser uma referência de mulher que ele não desejaria, bem como uma referência que ele desejaria (no contexto de um filho heterossexual).
Nossa visão de mundo pode ser distorcida de forma mais radical por meio dos fantasmas, que seriam traumas passados que modificam nossa percepção do mundo muito além do que uma pessoa regida por suas fantasias teria em questão de intensidade. Uma pessoa que sofreu ou levou determinadas situações como um abandono pode distorcer muito mais um acontecimento do que em outras pessoas. Algum amigo que simplesmente se atrasa para se encontrar com este indivíduo traumatizado pode gerar nele especulações extremas, como: será que ele se atrasou porque não estava afim de me ver? Será que ele não está interagindo porque não gostou do lugar que eu escolhi?
Em resumo: há um abismo entre o mundo exterior e nossa interpretação desse mundo exterior somente na dimensão da fantasia. E na dimensão do fantasma essa distorção aumenta de forma avassaladora. Não somos, de forma alguma, senhores em nossa própria casa e somos um reflexo de muitas variáveis que nos habitam de forma ininterrupta.
-Gabriel Meiller
Nenhum comentário:
Postar um comentário