Rolando a barra do meu blog e relendo textos da época metafísica eu percebo que fiz uma evolução no pensamento: enquanto cristão eu já desconstruía o fundamentalismo religioso que antes eu abraçava. No auge da minha fase cristã, eu já aderia à moda crescente, como muitos cristãos aqui, de enxergar a Bíblia por meio de Jesus Cristo (como Deus encarnado) e deixar de fora todas as partes consideradas "ultrapassadas" e desarmônicas com os evangelhos. "É mesmo?" Converso sozinho comigo mesmo e zombo desse eu ingênuo. E complemento: "E não pôde enxergar a contradição também nos quatro evangelhos e na construção do seu amado Jesus?"
O fato é que os próprios evangelhos, embora sejam tidos pelos cristãos descolados como suprassumo da revelação, também possuem contradições que os olhares hermenêuticos dos cristãos não estão destreinados para enxergar. O treino da hermenêutica cristã é o treino da harmonização bíblica! O olhar de um cristão é treinado para ler os 4 evangelhos, que possuem informações contraditórias, e sintetizar essas 4 versões em uma e dizer: "São singularidades de cada autor, mas a revelação é a mesma!"
Ora, no destreinamento hermenêutico para enxergar a Bíblia como uma miscelânia de diferentes crenças, percebe -se que há muitas divergências na qual cada autor enxerga Jesus, na qual descrevem seus feitos, e na qual descrevem seu sepultamento e sua ressurreição. Mas o olhar cristão não se incomoda e racionaliza: o que importa é que todos dizem a mesma mensagem: Jesus foi batizado, morreu e ressuscitou! Oh, simplórios! Quanta necessidade de crença. Então, muito bem: necessidade de crença não se refuta! Só outra necessidade de crença elimina a anterior e nenhuma sistematização de refutações fará algum fiel mudar de ideia.
E por que eu mudei? Ah, porque a religião já não representava quase nada para mim. Porque o Jesus descolado, o nazareno loko da revolução, já não simbolizava nada além de uma construção engenhosa. O relativismo me inundou e transbordou em mim antes mesmo de ter contato com Nietzsche. A história me alertou e foi minha conselheira: "quantas religiões temos no mundo, Gabriel? " E eu respondi: "Tantas quanto possamos imaginar e criar!" E ela prosseguiu de forma aguda e quase perversa: "Então, o que te fez cristão: nascer em uma família cristã ou numa cultura cristã? Pelo menos as probabilidades de você ser da religião vigente são altas, não é mesmo? Se você nascesse em um país árabe, provavelmente flertaria com o Islã!"
Então eu meneei suavemente a cabeça, engolindo essa "nova iluminação" em um misto de emoções. Era eu contra eu mesmo! O Gabriel metafísico, versus o Gabriel relativista e científico: aquele que descobrira que, sim, viemos de um ancestral em comum com os macacos; aquele que descobrira que o Gênesis é uma alegoria; aquele que descobrira que Jesus Cristo como deus encarnado foi um construção em cima da figura histórica de um nazareno; aquele que tirou o último alicerce de sua fé metafísica: Jesus Cristo como carro chefe do cristianismo descolado, do cristianismo que aprendi com Caio Fábio D'Araújo Filho. Foi um momento de total rompimento, inclusive com o pessoal do Caminho da Graça, que seguia esse Jesus de Nazaré descolado. Não rompi por querer, afinal, eu ainda frequentava aquele ambiente sem crer em Jesus Cristo; apenas frequentava movido pelos laços humanos! Mas então veio a pandemia e tudo o que já estava naturalmente se desfazendo... acabou-se por desfazer-se.
A morte do mito, a morte da fé; o que isso trouxe em mim senão um luto sufocado? Um luto reprimido e mal sentido? Freud já postulou que " As emoções não expressadas jamais morrem. Elas são enterradas vivas e voltarão mais tarde, mais feias." Percebo isso com mais clareza hoje. Uma identidade de 20 anos morreu, isto é fato! Ainda hoje tento sepultá-la, mas ela ainda está viva de outras formas.
"E quem eu sou agora?" Me pergunto hoje. "Um cínico!" Respondo a mim mesmo. O cinismo surgiu do total desprezo dos filósofos pelos bens materiais; a eles interessava pregar com a moral sua forma de pensar. Mas o meu cinismo não despreza os bens materiais: ele despreza a suposta verdade! Qualquer afirmação que digam: "Vejam, eu achei a verdade, ela está aqui!" Eu direi: "Olha só querido... não querendo estragar seu entusiasmo, mas..." E lá vou eu jogar baldes de água fria, pontuando outras visões contraditórias dessa suposta verdade.
Este é o meu cinismo: o desprezo pela verdade! A constatação de que boa parte do que afirmamos ser verdade, é apenas interpretação do olhar humano e restrição nesse pressuposto. "Que cara mais mau humorado...", critico a mim mesmo; e complemento: "Deixe as pessoas seguirem seu caminho provisório, deixe elas formarem sínteses sobre o que precisam; seja despretensioso! Não seja um destruidor de convicções, deixe elas mesmas destruírem se e quando quiserem."
Então perdoem-me, senhores! Perdoem-me pelo relativismo selvagem e pelo cinismo à verdade. Quem vos fala é um guerrilheiro bruto que precisa relaxar diante de tantas verdades e nenhuma certeza.
-Gabriel Meiller
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