quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Quando os valores cristãos não são suficientes: compaixão e misericórdia

 



Existe um limite para todo valor religioso ou laico, bem como para todo ideal de qualquer ideologia. Dizer que qualquer valor moral ou verdade de algum sistema é suficiente, significa reduzir e encaixotar a existência a um sistema de crenças. Isto é muito comum principalmente entre o imaginário religioso cristão, bem como em toda ideologia totalitária. 


Como a temática de Nietzsche continua atual, no sentido de criticar o holocausto cristão que subjugou os instintos do homem e o tornou um animal de rebanho, suprimindo as individualidades, a minha crítica será aos valores cristãos que moldaram o inconsciente coletivo do Ocidente. Não é uma crítica contra os ideais em si, mas a estes como valores insuficientes para a existência como um todo. Mais do que isso: uma crítica contra o mal uso desses valores e a universalização deles, como é praticado em muitas instituições religiosas.


Compaixão e misericórdia: 


São valores, como postula Nietzsche, passivos, negativos e que estimulam a conservação do que é baixo. Eles demonstram o adiamento de uma fruta podre que contamina as outras frutas sadias, como expresso na imagem do texto. Misericórdia significa "coração voltado para a miséria". Quando esses valores de misericórdia e compaixão são impostos pela moral (que é coletiva em si) eles já não são genuínos, mas fazem mal para quem os pratica sem critérios e para quem os recebe de forma ingênua. Aquele que pratica esses valores de forma obrigatória, tende a enxergar (de forma inconsciente) o alvo de sua compaixão e de sua misericórdia como inferior e um objeto de caridade para ressaltar o ego do praticante. Neste sentido o tão gabado assistencialismo religioso pode ser danoso e prejudicial.


A aplicação de forma sistêmica desses valores impede o praticante de enxergar os momentos de não demonstrar compaixão, bem como de não exercer misericórdia. Muitas vezes aquele que não é alvo de uma ajuda sistemática e contínua, aprende a cultivar independência, a endurecer diante dos desafios da vida, a travar batalhas no Ágon. Desta forma, a compaixão excessiva mata o seu alvo, o atrofia e não promove as qualidades ativas necessárias, além de cristalizar a pessoa que é alvo dessa compaixão como: miserável, digna de dó e piedade, inferior aos outros e doente em estado terminal. Já quem pratica a misericórdia e a compaixão sem equilíbrio tende a ser um possível narcisista arrogante que carrega o mundo em suas costas. Mais do que isso: se considera um escolhido por Deus para levar a salvação aos outros que estão perdidos nas trevas: "oh, coitados!" 


Ao invés disto, a vingança deve compensar; aquele que se vinga no sentido de não guardar ofensas, mas de devolvê-las, impõe limites e mostra que é digno de respeito e que não irá tolerar desrespeitos.  Aquele que é firme em suas posições (mesmo que pareça arrogante aos falsos humildes) é verdadeiro e sincero, enquanto o pietismo hipócrita e da falsa humildade é enganoso e pouco produtivo. 


Quem é mais sadio? Aquele que se ira e xinga seu semelhante e depois esquece das ofensas ou aquele que não devolve a ofensa, mas guarda o rancor e por isso adoece? Pior do que isso... retribui em dobro de forma sorrateira, mostrando um semblante calmo e sereno, mas irado por dentro. Este sujeito que aparenta estar calmo, na verdade está remoendo o passado por dentro, guardando de forma rancorosa seu ódio. É aquele que "mata na unha!" Aquele que sofre uma ofensa, mas não devolve... está acumulando brasas vivas sobre a sua cabeça: as brasas da mágoa. 


Mas aquele que devolve, nem que seja a devolução com o bem de forma ativa... este não guarda nada, não é ressentido, mas demonstra que está vivo e não se deixa ser castrado pela religião dos desafetos.  


O que percebemos da moral nietzschiana é que ela é contra toda imposição universal valorativa aos indivíduos. Cada um deve valorar a vida como bem entende, de acordo com suas reflexões. Ninguém é obrigado a seguir um livro tido como "inspirado por Deus" e praticá-lo. Cada um é responsável para seguir o que lhe convém e o que lhe vivifica. O "bem" e o "mal" não devem ser tomados como absolutos de acordo com a metafísica, mas como uma reflexão individual e segundo a vivência de cada um. 


"Conhece-se minha exigência ao filósofo, de colocar-se além do bem e do mal — de ter a ilusão do julgamento moral abaixo de si."  -Nietzsche


-Gabriel Meiller

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

A transvaloração dos valores bíblicos pela via bíblica: o Nazareno

   


 "Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perder a vida por minha causa, a encontrará..."


O mestre proferiu estas palavras cobertas de sentido, proféticas sobre a humanidade e a respeito da chaga do cristianismo. Aquele nascido nos cafundós da judéia nunca esteve tão certo. "Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá..." isto é: aqueles que querem a salvação da alma e entregam suas almas aos seguidores do Nazareno. Aqueles que não se enxergam como salvos, suficientes e admoestados pela pedagogia da vida... são entregues ao diabo sacro: ao próprio Nazareno, o profeta cristão.


Entregues ao Nazareno e aos fundadores de sua religião, estes são torturados e enfraquecidos, tornados decadentes, membros do rebanho e da castração bíblica. Estes, que entraram ao clube do Nazareno com a intenção de salvar suas vidas, perdem-nas de forma sistemática e progressiva.   


"Mas quem perder a vida por minha causa, a encontrará..." e assim, a alma desalmada

é enfraquecida. A alma que rasteja no deserto da autoprivação e da padronização cristã que estupra sua personalidade, sua apreciação da vida e uso da vontade... esta alma é invadida pela consciência da vida. Percebe seu erro de entregar a alma a Jesus e ser refém de uma metafísica enganadora, carrasca e que torna o fiel cada vez mais dependente. É neste momento: quando o combate útilmo é travado contra o cerne da religião cristã, ou seja, contra o Nazareno; é neste momento que a alma entende que perdeu sua vida por causa de Jesus, mas principalmente por seu desamor à vida, à emancipação e capacidade dela de gerí-la e montar seus próprios valores; é por essa percepção e combate aos ídolos mais ferozes que ela encontra a verdadeira vida, a vida em abundância; a vida emancipada do Nazareno e o triunfo sobre ele e o sistema podre que erigiram em seu nome. Desta forma: "...quem perder a vida por minha causa, a encontrará", pois nunca mais à deixará sobre o encargo de ídolos ou deuses, principalmente o pseudodeus cristão dos cafundós da Judeia. 


-Gabriel Meiller 


Um agradecimento especial ao cristianismo

 



Quero agradecer em primeiro lugar ao cristianismo. A religião cristã e eu somos muito íntimos de certa forma. Quem disse que religião estraga o homem? Este alguém está certíssimo; mas depois de estragá-lo com o senso de justiça/vingança, com as repressões aos prazeres e conhecimentos terrenos... depois de aterrorizá-lo com o medo do inferno ou com a culpa infernal... a religião o ensina a valorizar a vida! 


O cristianismo me escravizou para depois me libertar; me ensinou o que não fazer e o que fazer. Meu carrasco é meu salvador. Nesta relação mazoquista eu aprendi a amar este algoz abusador. Os homens fortes são aqueles que se permitem endurecer diante dos agressores e superarem a ele na luta da vida. 


Fui privado do conhecimento terreno antes; após a libertação o busquei de todo o coração, alma e entendimento. Fui privado do sexo e então me afundei nele; entretanto, este efeito rebote, esta antítese que criei me ensinou o caminho do meio. 

As antíteses são necessárias para compensar uma tese deveras reforçada. Os que entendem a dialética hegeliana sabem do que falo.

Durante os últimos seis anos eu fui a antítese do cristianismo, do sistema de fé que impõe valores universais e esmaga as individualidades. 

Aos que são cristãos e estão contentes, certamente não falamos do mesmo cristianismo. Mas aos que se identificam com o que estou dizendo, sabem exatamente do cristianismo que estou falando. 


Nesta antítese de seis anos eu virei um laboratório e minha própria cobaia, bem como meu próprio analista, cientista e salvador. Eram problemas que somente eu resolveria em uma meditação interior, ruminadora. Os excessos hedonistas foram instintivos após a jaula da minha alma se abrir. Eu queria experimentar de tudo um pouco, tudo que era lícito ou que pelo menos não era deveras horrendo e psicopatológico. Então com a melhor professora, isto é: a vida e suas consequências eu consegui tirar minhas próprias conclusões dos excessos. 


Diferente daquele não nascido na opressão e que se contenta com a zona média, nasci no raso e naveguei para as profundezas da alma. Não é orgulho arrogante o que escrevo, muito menos falsa humildade. É minha autoanálise diante do que vivi e com quem convivi, diante da média ponderada dos que observei. E posso concluir: o que faz um homem, em parte, é o aprendizado que este tira do sofrimento, é a vontade de potência que ele desenvolve quando os empecilhos da vida instigam esta vontade a aumentar para atingir seus objetivos. 


Ao meu mais brilhante e carrasco professor por quem nutro uma destrutiva admiração e agradecimento não tanto mais raivoso: ao cristianismo meu mais profundo agradecimento! Como o escravo que beija a mão do senhor que o espancou e depois o jogou à liberdade, após este não ser mais útil para nada... ao cristianismo meu afeto, no sentido mais primitivo e etimológico da palavra "afeto". 


-Gabriel Meiller

sábado, 10 de dezembro de 2022

O Eu lírico interno


 


Quando o silêncio do Real reina, as lágrimas são a expressão mais adequada. Nenhuma palavra, nenhum campo simbólico consegue expressar certas sensações e sentimentos peculiares do ser que deveras sente. A vertigem melancólica e a nostalgia saudosista do passado são sensações humanas, mas cada um sente como se fossem únicas: e de fato o são. 


O passado me aflorou, fui pego por ele desta vez. Meu semblante mudou e só restaram lágrimas e um misto de emoções boas e ruins. Uma zona cinza se fez presente no meu psiquismo e lembranças me pegaram de jeito avassalador.


O que hoje sou é um protesto ao passado; uma outra face da moeda. Eu estava em um barco com rumo certo e constante, regado de verdades eternas e aconchegantes. Houve então a explosão e o barco se estilhaçou em pedaços; nadei rápidamente em busca de um refúgio e encontrei um bote. O bote não tinha presunção de um caminho certo, adornado de aconchegos. Ao contrário, ele era selvagem, bruto, andava à deriva, pois nada o podia domar. Nasceu para a liberdade e para os ventos dos quatro cantos, sem rumos e atracando de vez em quando em ilhas no meio do oceano.


Pois bem... pedaços do barco destruído emergiram e seguiram o bote; outros barcos semelhantes se aproximam com certa frequência e se mostram desejosos de seguir um rumo junto ao bote. Os conflitos nascem dos contrastes entre barcos e botes... e então me vejo diante do espelho com uma aparência sem rosto. No lugar surgem diversas máscaras, assim como o poeta das mil e uma faces. Assim como aquele que não se curva diante de nada, mas venera todas as máscaras. 


Aquele que estava perdido,  mas foi achado nos braços do acaso; que encontra nos mitos o consolo e nas velas que iluminam o escuro a redenção do obscurantismo. Mas ao perceber que tudo isto é muito incerto e nada se pode saber... descansa na escuridão das incertezas e diz: o que quer que haja aí, fora do oceano cheio de botes e barcos... eu aceitarei de bom grado. Este sou eu, em uma imagem metafórica; como um interior cheio de jardins da alma que são atemporais, pois o hoje e o ontem para mim são a mesma coisa e me afetam da mesma forma. Os jardins mais ricos, são os mais caóticos; me disse certa vez um ser de bigodes com expressão fechada. 


-Gabriel Meiller

sábado, 29 de outubro de 2022

A natureza do desejo

 



 Todos nós alguma vez já passamos pela semelhante sensação de enjôo. A receita para esse tipo de sensação é o excesso; e mais ainda: a conquista. O homem enquanto desejador, constituído por uma explosão de sentidos e desejos contraditórios, é um ser aspirante por natureza. A aspiração e a não realização do desejo é o combustível existencial para que este primata guloso se mova na existência.


A inquietação e euforia humana é uma consequência do desejo utópico, platônico e não realizado. Falando de forma biológico-evolutiva, as estruturas cerebrais e orgânicas de um homo sapiens funcionam a base de estímulos e liberações de hormônios do prazer, como a dopamina e a ocitocina, por exemplo. 


O sexo, a apetitosa comida, a realização de um desejo... são sinalizados e recompensados pelo cérebro após a posse, isto é,  a satisfação das carências existenciais. Recompensar o sexo através de hormônios do prazer é um sinal de que nosso organismo está preocupado em reproduzir e manter a espécie viva.


A recompensa de comer uma refeição, através das endorfinas liberadas, são uma sinalização do organismo de que ele precisa se alimentar para sobreviver fisicamente e não morrer de inanição. 


O batimento cardíaco acelerado é um reforço orgânico e cerebral que se manifesta mediante o medo, ou seja, um mecanismo de defesa que visa preservar a espécie humana.


Porém, quando conseguimos o que almejávamos, o que tínhamos curiosidade em conhecer, em ter, em experimentar... esses hormônios de gratificação diminuem. Os hormônios que antes o cérebro produzia por causa de tamanha euforia devido à inalcançabilidade do desejo, agora diminuíram e o ser desejoso vivenciou sensações mais normais, ou quem sabe até tediosas pela baixa de hormônios do prazer. A novidade se foi... desceu ladeira a baixo e caiu na rua do conformismo. 


Por que? Por que? Muxoxa tristemente o coração humano! Por quê o que tanto brilhava não brilha mais e produz tamanha luz moribunda? As ruas de cristal e o caminho de diamantes se tornaram lama e esterco. Um caminho de palha na roça, marcado pela monotonia de pálpebras cansadas dos forasteiros perdidos, se faz a única opção aos seres viventes exauridos da vida. 


Estapafúrdia! Estapafúrdia! Aglomerados de lembranças e momentos que logo se findam é a vida. Um rápido e imperceptível flash na escuridão que logo se dissipa sem nunca ter sido antes notado e que refletiu com tamanha moribundidade estapafúrdia. 


O mundo dos prazeres não tem sentido; o mundo como vontade e representação é um surto coletivo dos homo sapiens. Brada a angústia de dentro de um peito entre 6 bilhões de peitos... MUNDO, MUNDO, VASTO MUNDO. O que é tudo isso? Pessoas que nascem, passam a vida se empenhando em desejar e suprir os desejos... para depois acabarem decompostas no túmulo? 


"Não!' Acrescentou a angústia coletiva do homo sapiens, incapaz de ouvir o grito do silêncio. E então surgiu a alma! Surgiram os contos amenizantes que buscaram controlar o homem de seu surto. As religiões são os famosos "era uma vez". Mentiras reconfortantes! Antes mentiras reconfortantes e indivíduos menos surtados, do que verdades enlouquecedoras. Do que o caminho da roça de pálpebras cansadas e sem ruas de cristal. 


A verdade? Às favas. Todas elas nunca me deram nada senão mais dúvidas, pálpebras cansadas e caminhos de roça repletos de esterco e palha podre. A verdade de nada serve para quem é um flash imperceptível na escuridão do abismo. Moralismo ateu? Que vá para a casa do caralho! O ser humano é livre para se iludir, ou se deprimir! 


-Gabriel Meiller

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Sociedade do cansaço como sociedade da irreflexão

 


Nossa forma de valorar a qualidade de vida através do que fazemos na pós-modernidade tem sido uma valoração que faria os antigos caírem na gargalhada. Os renascentistas se ofenderiam com nossa loucura desvairada em lidar com o conhecimento de forma tão superficial e desinteressada, tratando tudo e todos como um meio para alcançar o fim: a felicidade. Ou melhor, a ilusão da felicidade por meio do entretenimento globalizado. Este entretenimento globalizado é um frenético movimento de (auto)inovações e (auto)aperfeiçoamentos a todo momento e sem a valoração e medição adequada sobre a necessidade dessa constante mudança e troca de coisas, objetos, cargos, pessoas, etc. 


Isso significa que virou um quase extinto para o homem moderno este constante movimento de cultivar a alta performance a todo custo e em todas as áreas. Vemos, por exemplo, academias lotadas pela busca do corpo ideal. Entretanto esta busca é desacompanhada de reflexão mais profunda sobre: condições a longo prazo de manter esse estilo de vida; grau de necessidade da busca deste ideal; consciência das etapas e da disposição energética que será investida nesse caminho trilhado.  Constatamos pessoas se formando em universidades, mas não calculando os próximos passos a serem dados ou o fato de não chegarem a completar o curso. Vemos pessoas que se casam, têm filhos e se divorciam, recomeçando o ciclo de forma sistemática como que em instinto. Mas não se questionaram sobre a utilidade ou se de fato querem ter filhos, casar, etc.


Muitos buscam o que buscam pelo fato de uma sugestão midiática e pelas bolhas sociais em que estão. A psicologia das massas do cotidiano fez seu trabalho de pauperizar as ações e reflexões do ser humano que é bombardeado por sugestões de hábitos, desejos e fetiches humanos divulgados pela sociedade de forma marketeira. Estes correm uma corrida dos ratos sem o questionamento principal: "Quero isto de fato ou só estou nesta corrida por ego inflado? Pela vontade desmedida de ganhar e me reafirmar em cima do outro em qualquer área e sob qualquer custo?"


Nossa sociedade é a sociedade do cansaço, pois somos poliatletas em uma enorme maratona com diversas modalidades simultâneas. A felicidade virou obrigação e os requisitos mais básicos precisam ser alcançados por nós: corpo ideal, renda ideal, família ideal, hobbies e forma de se vestir ideal... arre! Para o caralho tudo isso! O ideal mata o real e o cansaço exaure aquele que não exerce o pensamento crítico e pessoal sobre o que quer e para onde irá. 


Só poderá ser um bom competidor quem sabe o que de fato quer e por isso reserva tempo e energia ao que deseja e pelo que de fato é movido. Quem deseja o sucesso em tudo não pode alcançar uma alta performance e logo se cansa, sobrecarrega-se e provavelmente não alcançará nada. As redes sociais são desonestas, visto que mostram somente o ideal deturpado de felicidade de alguns, mas não mostra os esforços concentrados e energia exclusiva que estes investiram para chegar até esta posição, muito menos os momentos de crise e agonia pelo qual passaram. 


Muitos Sísifos emergem na pós-modernidade, visto que são escravos de suas irreflexões e impulsos. São inferiores ao Sísifo original, pois nem sequer chegam ao cúme do monte com a pedra, visto que cansam antes do trajeto a ser cumprido e decidem um outro trajeto, um outro projeto de vida, motivados pela ilusão de melhoria e do falso aprimoramento. 


Somos doutrinados e ensinados a desejar de acordo com as sugestões do meio; sujeitos do desejo razo e impensado. Embora nossa maior área do cérebro seja formada pelas partes responsáveis por decisões emotivas e viscerais, podemos usar as áreas mais racionais para administrar nossos impulsos e desejar com intensidade o que podemos almejar além das meras induções externas e das propagandas que visam manipular e manufaturar o desejo da massa para melhor controlá-la. 


É raro hoje em dia o verdadeiro ato de reflexão... em que o indivíduo dedica tempo e cessa tudo o que está fazendo para pensar e traçar planejamentos pessoais de acordo com sua consciência. Hoje a tecnologia e o mundo globalizado podem planejar, desejar e sonhar por nós. Estamos perdendo nossa autonomia em desejar, lutar, pensar e sentir de forma única e subjetiva. 


-Gabriel Meiller

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Sentimento oceânico e a necromancia vivificadora

 



Romain Rolland, em carta a Freud, descreveu uma experiência mística que teve repetidas vezes como "sentimento oceânico" e que em síntese é a sensação de êxtase e de conexão com o todo e sentimento de algo ilimitado, etc.  


O que Rolland descreveu pode ser sentido de diferentes formas por diferentes pessoas. Mas o que chama a atenção é esta experiência de absorção e impacto deste sentimento. Algo espiritual? Sem dúvida! Transcendental. Mas não está necessáriamente ligado a divindades ou religiões; ateus, agnósticos e simpatizantes da grandeza e da profundidade do conhecimento certamente já sentiram um vislumbre desse sentimento oceânico! 


Minha espiritualidade, assim como a espiritualidade de muitos, é ficar embasbacado com a profundidade e riqueza do conhecimento científico, principalmente quando a cosmologia, astrofísica e outras ciência entram em ação. Quem não navegou por estes territórios e ficou pensativo, impactado, intrigado... e se sentiu imerso nesse oceano de emoções diante da complexidade e mistério do universo? 


A ciência é esta vela no escuro, como metaforou o amado Carl Sagan; este, acima de tudo, nos ensinou esta "espiritualidade científica", ou seja, esse entusiasmo ao encarar a ciência de uma forma vivificante e não mais tediosa como faria um adolescente do ensino médio entediado e sonolento. 


O sentimento oceânico me toma conta, principalmente nas madrugadas e nos momentos em que transito por vários temas transdisciplinares. Gatilhos são ativados e levam a outros temas e... de repente me sinto agoniado por não conseguir devorar todos esses macro-assuntos, pois isso levaria décadas de estudos. Então me sinto afogado em um oceano epistemológico e com uma voracidade que não prosseguiria sem árdua e constante disciplina. Este é o momento em que me afogo e desejo a onisciência fantasiosa expressa na Bíblia. 


É na constatação de minhas limitações cognitivas e existenciais perante toda a existência que eu posso falar como Paulo de Tarso: "Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento... da existência!".  Pois a existência é palco de todos os fenômenos que são maiores do que as interpretações humanas desses fenômenos. Temos no nosso imaginário coletivo todas as contradições possíveis e que são produto da tentativa de dizer o que de fato é a existência. 


Alguém pode mesmo dizer o que é a vida? Para nossa impotência existencial, nasceram os nossos ídolos. O homem, fraco por natureza, concebeu um deus todo poderoso; limitado em conhecimento, concebeu um deus onisciente; pequeno e presente somente a um lugar por vez, imaginou que estaria sendo vigiado e seguro pelo vigilante que estaria em todo lugar: o onipresente. E então, ao invés de conhecer e expandir seus conhecimentos, o homem covardemente se enclausurou na Idade Média, entregando a riqueza do mundo ao seu ídolo asqueroso e impertinente. O conhecimento foi considerado pecaminoso e pervertedor. Esta era de obscurantismo somente teve fim quando o homem se revoltou contra este ídolo e voltou aos caminhos do amor pela Sabedoria. Sim, ela! A dama seduzente e extasiante que faz a humanidade se perder em suas curvas; que dá ao homem o terror e o entusiasmo pelas incertezas dos rumos do universo. 


Ela nos retirou da era da escravidão medieval e nos levou a um novo caminho; incerto, é claro! Aonde não sabemos para onde iremos, como advertiu Nietzsche; mas que nos faz peregrinar pelo vale da liberdade em saber que somos humanos, demasiado humanos. Presos e escravizados; não por deuses, mas por nossas vontades e desejos. E isto, a responsabilidade sobre nós pelas tragédias e grandes feitos, é o que mais importa e nos dignifica. E não a covarde transferência para outrem; não a confiança a "Ele" ou "Eles"... mas a nós! E isto nos basta! 


E ao retornar de meu delírio e êxtase, sento a bunda na cadeira e me preparo para ser consumido neste fogo consumidor. Disposto a navegar pelas correntes que me levem a algum ponto deste oceano epistêmico. Leituras e reflexões atrás de mais leituras e reflexões; ergo sacrifícios nestes altares em que a tinta dos que morreram a muito tempo, clama percepções e pontos de vista por meio de livros. Então me comunico com estes mortos e sou levado ao além do senso comum, tido como louco por uns... lúcido por outros. 

-Gabriel Meiller

domingo, 28 de agosto de 2022

A falência da consciência política brasileira e sua relação com a ignorância histórica

 




Frequentemente tenho contato com conteúdos sobre a história do Brasil pelo fato da minha profissão (como professor de História e Geografia) me impor cotidianamente este ofício. 


Meu resumo até agora sobre a vida política, social e econômica do país pode ser o seguinte: 


O Brasil começou em desigualdade, exploração e corrupção desde seus primórdios. As capitanias hereditárias impulsionaram a riqueza na mão de poucos e a sua perpetuação. As câmaras municipais e os governos gerais exalaram a corrupção luso-brasileira na colônia. Nosso país recebeu a mentalidade de bandeirantes que eram criminosos na metrópole e que ao serem exilados ao Brasil, transmitiram a cultura da roubalheira e do jeitinho brasileiro. 


A escravidão e a economia de exportação do mercantilismo aprofundaram e foram a base para a exploração e violência. A abolição mal feita da escravidão somente modernizou esta escravidão e deslocou os pobres das fazendas para as favelas e periferias, causando miséria e pobreza. Muitos dos descendentes de escravos ou se tornaram humildes trabalhadores, ou criminosos revoltados. Poucos mudaram de status social e ascenderam à vida digna e à riqueza. 


Quando o Brasil se tocou que nem só de café ele poderia viver, houve a era da industrialização. Muito mal feita, por sinal. Foi nesse cenário que os políticos populistas se aproveitaram da fragilidade do povo e semearam a cultura política populista. Vargas foi o pai fundador deste populismo e o governante que jogava do lado que lhe beneficiava melhor; um grande toma lá da cá. Na segunda ele jogava a favor da esquerda e na quinta: estava com a direita. Tudo isto porque amava o poder acima de tudo e de todos!


Mas com a maturidade, já em seu último governo, Getúlio planejava desenvolver o país. Criou a Petrobrás, o BNDE, bem como esteve disposto a dar prioridade para a nacionalização das empresas e para o trabalhador que seria o sustentáculo da indústria brasileira. Esta atitude que não servia aos desígnios dos EUA, que tinha interesses imperialistas nos recursos brasileiros, fez com que Getúlio enfrentasse oposição de fora e de dentro! A ruína de Getúlio foi querer fazer do Brasil um país desenvolvido e emancipado industrialmente. Isso não era bom para a política estadunidense e qualquer político que tentasse algo parecido, como João Goulart e suas reformas de base, sofreria um golpe militar financiado pelos Estadunidenses e pela elite brasileira aliada. 


Décadas se passaram e a política brasileira está condenada ao populismo de sempre. Políticos que conquistam o povo pelo carisma e não pelas propostas; e os que apresentam propostas decentes sofrem a indiferença e o bocejo do povo. Por que? Porque o brasileiro não tem memória; não analisa a história. Seja porque só tem tempo para trabalhar e sobreviver, seja porque seus lazeres são destinados apenas à cultura K-pop, barzinhos, baladas e fofocas. (Nada contra, mas a vida vai além disso). 


Nossa política é batida, caricata, dominada por coligações partidárias presentes no Senado. O diabo está no Senado Brasileiro e seu preço para o pedágio político é alto! Nenhum presidente governa sem vender sua alma ao centrão! Esta mentalidade veio dos primórdios do jeitinho brasileiro e contra a força da cultura e do hábito nada podem o heroísmo e a obstinação barata.


Nossa elite se vendeu para os interesses externos e para a velha economia de exportação e rejeitou a inovação e potencialização da indústria nacional. Nosso povo, embora tenha toda a informação em mãos, é manipulado por ela e não faz questão de buscar o esclarecimento. 


Resta ao povo... as migalhas. E aos lúcidos: o choro e a desilusão! 


-Gabriel Meiller

domingo, 24 de julho de 2022

Morte, vida e religião no Ocidente

 



Os rituais fúnebres são uma expressão dos maiores mistérios da humanidade: a morte e a relação da humanidade com esta. Conhecemos o medo da morte; medo que amplificou o espírito religioso na espécie humana. Mas conhecemos a veneração à morte praticada pelos antigos? Aos que não buscam as raízes das crenças atuais, estes estão condenados ao grande abismo da ignorância.


Os primórdios da cultura greco-romana são acompanhados de crenças profundas na vida pós-morte. A alma do morto não viajava para outra dimensão, mas ficava na sepultura. Ali deveria ela descansar, caso contrário vagava errante pela Terra e atormentava os homens. Os rituais funerários eram para desejar à alma o devido descanso; as oferendas de comidas, bebidas e sacrifícios humanos na sepultura do morto eram para assegurar-lhe o gozo e a servidão. 


Maior negligência seria não enterrar seus mortos; tanto que generais atenienses que venceram uma batalha foram condenados pela plebe à morte, pois não buscaram os corpos dos soldados mortos para serem enterrados. Isto era falta grave, um insulto às almas que agora eram condenadas a vagar errantes sem seu descanso. 


Os criminosos eram condenados a não ter um enterro, mas os homens de bem deveriam tê-lo por deveras. 


Com o tempo os conceitos foram evoluindo, isto é, mudando de forma. E então o conhecido Hades, constituído pelo Tártaros (lugar dos maus), Campos Elísios (lugar dos virtuosos) e Campo de Asfódelos (dos irrelevantes) surge nas crenças religiosas destes povos.


Coincidentemente (ou não), o conceito de inferno do Novo Testamento, surge quando os judeus/cristãos, entram em contato com esta cultura helênica. E na epístola sob o nome de Pedro (2 Pedro 2:4, que óbviamente não foi ele quem escreveu) cita o Tártaros no idioma grego para falar do inferno. As Bíblias traduzem de diversas formas, adaptando segundo melhor lhes convém.  


Mas o que isto significa? Que a cultura greco-romana influenciou por deveras todo o Ocidente e o próprio cristianismo que nasceu no paganismo através de conceitos greco-romanos, como o conceito de inferno, bem como as liturgias do culto, através da oratória grega e também a sutil arte de se apropriar de qualquer festa pagã (vide o natal e a páscoa pagãos). 


Podemos concluir que há uma intensa ligação entre a morte, vida e as religiões; o sentido dos mitos e das crenças religiosas orbitam nessa necessidade vital do por vir que sacrificou por muito tempo a vida no aqui e no agora. Entretanto, quando ensaiamos em sair dos mitos e do estado religioso, uma angústia brota no coração do homem. Poderão os mitos modernos, através da sociedade pautada no conhecimento científico, tecnológico e nos rituais da performance social (ser sempre o melhor e se superar perante a si e os outros) preencher tal angústia e contentar o coração do homem?  Esta é a mais obscura questão que de antemão já possui vislumbres: é evidente que não!  


Enquanto isto navegamos na grandeza do desconhecido e na satisfação de viver construindo nosso sentido singular ao que chamamos de vida! 


-Gabriel Meiller


(Ps: Referência teórica sobre as crenças de vida após morte nas sociedades greco-romanas: "Cidade Antiga", de Fustel de Coulanges.)

A doença de Frankenstein

 





Frankenstein sempre foi um bom homem... tinha um casamento normal e exemplar. Seus filhos estudavam em escolas particulares e eram levados de carro todos os dias. 


Um engenheiro que não deixava faltar nada a sua família e que ajudava seus familiares bem como a vizinhança não era algo de se passar batido. 


Não havia vida dupla em sua história, pelo menos é o que todos sempre acharam. Ele era católico, assistia futebol com os colegas do trabalho e frequentava os happy hours de sexta a noite. 


Tinha uma rotina previsível demais; era tranquilo demais, metódico e previsível como a maioria de seus compatriotas. 


Um dia, sem mais nem menos, após levar seus filhos à escola e fazer uma pausa para almoçar... Frankenstein estacionou o carro em uma rua sem muito movimentos. Olhou para seu lanche: uma embalagem de fast food e depois de comer seu lanche de forma calma e fria... respondeu fortuitamente a mensagem de seu chefe sobre os relatórios da semana passada. 


Após um tempo em profundo silêncio e sem demonstrar qualquer expressão... tateou o assoalho abaixo do banco do motorista e pegou uma arma. 


As cenas seguintes são as mais comuns de filmes de suspense: ele aponta o cano da arma em direção às suas têmporas e puxa o gatilho. Horas depois é identificado e gera um misto de emoções em toda sua comunidade, bem como perguntas sem respostas que atormentam a mente dos mais próximos. 


"O que teria levado Frankenstein a cometer tal sandice?" 


Frankenstein sofria do pior dos males que compensava toda a vida perfeita e exemplar que ele tinha: Frankenstein era incapaz de amar! Amar a si, sua família, e qualquer coisa que fazia; apenas cumpria todos os protocolos sociais e responsabilidades que a sociedade lhe exigia. No final de tudo, sua morte física foi apenas uma tácita consequência de sua morte interior, disfarçada por todas as morais e princípios que ele carregava diante de todos. 


O ato mais lúcido de Frankenstein, talvez, tenha sido dar cabo de tanta encenação que se prolongava por anos. Lamentável seja que a forma que ele encontrou de dar cabo a tudo isto tenha sido a sua autoaniquilação. 


-Gabriel Meiller

sábado, 9 de julho de 2022

As bipolarizações não superadas


  


Claro e escuro, bom e mau, bonito e feio, forte e fraco, justo e injusto, ativo e   passivo... bem como quaisquer outros adjetivos e conceitos que expressam a mentalidade dual do Ocidente ao Oriente. 


O que nós aprendemos destes arquétipos e quais as consequências desses conceitos didáticos que formam a estrutura de nossas personalidades e gêneros? 


A dualidade é magnífica, precisa, encantadora e divisora de águas, ou seja: preto no branco. Entretanto, a bipolarização e o maniqueísmo são o erro de aplicação das dualidades arquetípicas que acometem dos mais novos aos mais velhos. A dualidade como um fim em si mesma gera o adoecimento da psiquê! A dualidade é apenas um meio para que possamos, depois de usar esta canoa que cruza os lagos, abandoná-la e chegar ao nosso destino que ao contrário de ser preto no branco, pode ser cinza, quando não deveras colorido!


O universo não brada aos leitores? Não demonstra que somos uma infindável  combinação de muitos fatores materiais e imateriais que formam algo ou alguém? Átomos, antes de tudo, e depois ilimitadas possibilidades em ser através desses diferentes átomos, gases, elementos químicos, estruturas, crenças, mentalidades e condicionamentos biopsicossociais! 


Mas somos condenados por nossa teimosia em adorar ao permanente, estático e definitivo! O que gera a bipolarização, senhores, é a falsa noção de que somos estáticos e de que todos precisam seguir a um só conceito e ideologia como verdade absoluta. A guerra entre os sexos, por exemplo, como mencionei no texto anterior, só tem sentido quando a sociedade incorpora papéis prontos e acabados e reproduz este papéis sem nenhuma mudança ou aprimoramento. Logo, os homens sempre irão se prender ao conceito hegemônico de correrem atrás das mulheres custe o que custar e de correr a maratona de que precisam ser ricos, fortes, ativos e sedutores sem nenhuma nuance ou flexibilidade nestes conceitos. Logo, o animus aflorado (ver animus e anima de Jung) gera o machismo estrutural e qualquer crítica do movimento feminista é levado como uma afronta ao "ser homem em si", o que nunca foi intenção do feminismo, que se preocupa muito mais em lutar pela emancipação feminina em si. 


Não estou dizendo que o homem precisa ser sempre sensível, fraco, desinteressado e passivo... mas que pode sair exatamente desse idolatria associativa dos polos em que ou ele é forte ou fraco, ou pega todas ou é mole e gay, ou é puro e cavalheiro ou tóxico e que maltrata as mulheres. Esta é a doença: a bipolarização que tomou conta da guerra entre os sexos. 


O mesmo apliquemos nas ideologias políticas (que estão intimamente relacionadas à bipolarização entre os sexos), às rivalidades desportivas, ao gostos artísticos e acadêmicos, bem como guerras religiosas, etc. 


O que Nietzsche diria de tudo isto em suas considerações? "A arte da nuance!". O indivíduo pela ótica nietzschiana é aberto, múltiplo e possui inúmeros arquétipos e faces dentro de si mesmo, conforme demonstrado: 


"Eu sou vários! Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou, e correrei os riscos de estarmos juntos no mesmo plano. Desde logo, evite ilusões: também tenho um lado mau, ruim, que tento manter preso e que quando se solta me envergonha. Não sou santo, nem exemplo, infelizmente. Entre tantos, um dia me descubro, um dia serei eu mesmo, definitivamente. Como já foi dito: ouse conquistar a ti mesmo."


Desta forma, relaxemos os ímpetos bravios e religiosos que clamam pela dualidade como um fim em si mesma e sejamos os inclusivos e refinados em personalidade: seres de almas largas e nuançadas pela arte da nuance. Não digo esquizofrênicos e bipolares, mas amplos e profundos em nossas formas de ser: espíritos livres; capitães de nossas almas e senhores de nossos destinos, ainda que feridos pelas fatalidades do acaso e de forças maiores aos nossos quereres.

-Gabriel Meiller

A dança de Sheeva




A tristeza e a melancolia são naturais da arte de se viver. Em um mundo que preza pela performance e pela estética da perfeita alegria e positividade... a alma se deprime. Os grandes ditadores da depressão são as redes sociais divulgadoras de uma opressão: a hercúlea normatização da vida bem resolvida, bem vivida, feliz e cheia das cores mais vívidas. Sorrisos brancos sem manchas, olhos firmes e compenetrados, metas atingidas, fotos conceituais com fundos perfeitos. 


"Sorria, contente-se, seja o melhor!", urge a puta sombria que escraviza os infelizes com as sombras das aprovações de pessoas (a princípio sem nomes) que representam números importantes de seguidores.  Nossa infelicidade é fruto do descontentamento que é consequência da constante comparação abundante nesta corrida de ratos. 


Estamos no holocausto do autoflagelamento onde os próprios prisioneiros se torturam e se coergem a competir neste eterno e piorado ágon pós-moderno. E os méritos são nossos; nossa expertise, inovação, invenção de um novo portal invisível onde a vida parece editável e passível de redenção... estas revoluções digitais despertaram os impulsos mais potentes escondidos nos recônditos da alma que foram forjados na Idade da Pedra. Nosso ego, entretanto, este carrasco caprichoso... se manifestava através da ênfase dos mais robustos em seus papéis de caça e coleta; a imortalização destes homens alphas era realizada por meio de suas sementes implantadas nas fêmeas. 


Pasmem! Milhares de anos se passaram e os comportamentos continuam os mesmos. Entretanto, adornados pelo atual mecanismo que incrementa esta dança do acasalamento: a industrialização e os valores monetários que simbolizam a garantia do conforto e da segurança material da fêmea que irá abrigar em seu útero a prole deste grande semeador. Este é o sagrado pacto que as construções psicossociais estão, recentemente, tentando mitigar em nome de uma nova transvaloração destas naturezas primordiais coodependentes. 


Mas até quando o Coliseu se reunirá para continuar assistindo esta corrida dos ratos que se adorna de todos os símbolos e recursos extravagantes que fazem o primata cabeçudo, dominado pelos instintos mais primitivos, se vangloriar de sua vontade de potência que se consuma no ato sexual simbolizador do poder da imortalização e perpetuação de suas energias através da sua descendência?  


Não esqueçam, senhores: todo trabalho duro e todos os esforços do macho são uma dança do acasalamento em busca da imortalidade simbólica. Tudo ou quase tudo gira em torno do sexo; nosso mundo é governado por uma abissal camada sutil e implícita: as relações sexuais. Não se trata do sexo pelo sexo, meus caros! Se trata da urgência da demonstração de poder e força por meio do sexo. E este ego do homem primordial, aflorado na biologia evolutiva do homo sapiens, foi esculpido como uma necessidade de perpetuação da espécie, portanto, de imortalidade em última instância. 


Portanto, se destruírmos o mundo por conta da nossa ganância é exatamente porque a natureza evolutiva desejou salvá-lo por meio do ego que é o desdobramento dos impulsos de procriação. Entretanto, esse impulso de vida gerou morte a partir do momento em que o homem amplificou o seu poder de conquista por meio dos recursos tecnológicos. 


Em resumo: podemos dizer que a vida, em sua ganância caprichosa de querer se perpetuar, se boicotou na encarnação do homo sapiens que capturou esta poderosa energia atômica e a direcionou sem escrúpulos para a arte do acasalamento. 


E todos sabem que a arte somente é feita através da dança em cima do caos e da destruição. Óh, néscios! Não dançaram com o Deus Sheeva no princípio de todas as coisas? Sua dança da destruição é puro capricho para que algo de explêndido tome seu lugar por direito. E quem poderá dizer se isto será melhor ou pior? O vazio será o árbitro e juiz dessa nova era em que os homens serão extirpados da face da Terra justamente como punição por desejarem viver para sempre!

-Gabriel Meiller

sexta-feira, 1 de julho de 2022

A falta de nuance pelo sim e pelo não

 


Quão difícil é ao ser humano o caminho do meio, ou melhor, como diria Nietzsche: desenvolver a arte da nuance. O homem (pós) moderno que baseia a sua vida pelo "sim" e pelo "não" ao invés do "talvez" ou do "Sim, porém..." ou "Não, entretanto..." tem um pesado fardo a carregar. Ele será batido no liquidificador e moído no moinho da vida que cobrará ele por este temperamento afoitamente jovial e globalizado. Digo-lhes que este não sairá do moedor até que lhe pague o último centavo e preste continência à arte da vida em nuances. 


O fantasma desses tempos, que tem assombrado a realidade dos tecidos sociais, é a rotulação excessiva. Este diabo deve ser exorcizado do coração dos desafortunados que imergiram sem filtros e proteções na realidade das redes sociais e na opinião dos influencers. A bipolarização continua uma característica deveras moderna, mas nada nova debaixo do sol. Esquerdista ou direitista; gay ou hétero; nacional ou internacional; patrão ou trabalhador; saudável ou tóxico; magro ou gordo... todas simplificações por um "sim" e por um "não"; por uma linha reta ou um círculo. 


E observando o longo testemunho que a história tem fornecido deste museu de grandes novidades... vejo que a humanidade é este amontoado de fenômenos inadjetiváveis e algo impossível de expressar em palavras sem reduzir o significado inexpressível do que de fato ela é! Basta apenas dizer que a humanidade é! (O Real de Lacan)... apenas é! E este "é" causa grande espanto e temeridade, ao mesmo tempo que maravilhamento e contemplação. 


Poderia algo mais se dizer sobre tudo isso? Seria apenas prolongar o que já se deu por encerrado, chutar cachorro morto. O silêncio da reflexão e a contemplação em pensamento oceânico sobre tudo o que é a humanidade... basta!


-Gabriel Meiller

sexta-feira, 4 de março de 2022

O eterno rasgar-se e remendar-se; caminhos que podem levar à "loucura" ou à maturidade




Confusão. Esta é a palavra definidora de um dos momentos em que estou vivendo; a vida é um constante rasgar-se e remendar-se, como diria Guimarães Rosa. Esta sabedoria é conquistada à base de sofrimento, desilusão e amadurecimento. 

A confusão gera em mim inquietação, ansiedade e todo tipo de oscilação de humor provocada pelo medo. Não é um bom momento em minha vida pessoal e na verdade meus últimos meses têm sido por demais conturbados. 

Sabe o sentimento de que você está sem o controle? Sendo conduzido em um veículo com os olhos vendados por sequestradores e sem saber até onde este rapto irá terminar e em que irá terminar? 

Este é o meu sentimento. O sentimento momentâneo em que se é ultrapassado pela vida. Em que eu já não sei o que quero e o que serei; sei o que fui, mas não sei o que estou me tornando. Esse sentimento de desbussolamento em alguma área da vida de um indivíduo é desestabilizador. 

Naturalmente a quebra das expectativas e idealizações nunca são agradáveis, mas sempre conduzidas por momentos dolorosos. Esta quebra de expectativas e idealizações (muitas vezes extremamente rígidas) sobre como o mundo, as pessoas ou você mesmo deveria ser... é uma dor intraduzível. O famoso rasgar-se e remendar-se!  Pois bem, este momento é meu!

E palavras escritas de um dos maiores conhecedores da alma humana, Friedrich Nietzsche, me fizeram refletir sobre o que estou vivendo: 

"A inclinação à cólera e o instinto de veneração, que são próprios da juventude, não parecem repousar até que tenha desfigurado homens e coisas, para poder assim se desafogar. A juventude em si já é alguma coisa que engana e falsifica. Mais tarde, quando a alma jovem, torturada por mil desilusões, se encontra finalmente cheia de suspeitas..." 

Em suma a ingenuidade e a idealização da juventude sobre a vida em si é um baita liquidificador que bate, tritura e amassa a alma do jovem idealizador. Como bem ressalvou Cartola: "Ouça-me bem amor, presta atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos... vai reduzir as ilusões a pó." Este é o fio condutor! Entender que o preço da maturidade é acompanhado do doloroso processo de se deixar ser rasgado pelos fatos da vida! 

Quando aprendemos a nos relacionar com o mundo de acordo com a realidade, a aceitar as coisas como são, sem uma aspiração de que a vida seja uma Disneylândia, ganhamos paz, vitalidade e contentamento! Este é o desejo que tenho para mim mesmo; não sei aonde a existência e o mundo (como um moinho) estão me levando; estes aparentes sequestradores! Mas torço sofregamente para que eu olhe para trás e não me arrependa de ter vivido e ter sido esculpido como uma bela obra de arte pela vida. Pois no final é o que somos: construções mediadas pelas contingências do universo. 

-Gabriel Meiller
 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O significado de expressões envolvendo a palavra "merda"

 


  


   Entrando em uma abordagem socio-filosófica podemos refletir acerca do significado de expressões que envolvem nossos bolos fecais, chamados de "merda" na linguagem cotidiana e vulgar. Expressões como: "Ai, que merda! Você come merda? A vida é uma merda. Fulano é um merda" e por aí vai... são muito faladas pela maioria da população em algum momento de raiva, indignação ou embasbacamento diante de alguma situação. 


Entretanto, os significados destas expressões podem ser muito mais profundos através de análises menos rasas que exigem um conhecimento básico de fisiologia. Segundo a fisiologia, isto é, o estudo das funções regulatórias do corpo com o objetivo de manter a homeostase, a merda humana, ou seja, o bolo fecal humano, são os restos inutilizáveis do aparelho digestivo humano. Nos seres humanos a digestão é tão eficiente que se alguém comesse merda humana, não teria nenhum proveito. Enquanto alguns animais comem merda de outros animais com objetivo de adquirir alguma qualidade nutritiva (pois a digestão de outros animais não humanos é inferior à digestão humana e por isso a merda animal possui alguns nutrientes e é por isso que seu cachorro pode vir a comer merda na rua, pelo fato de estar desnutrido ), a merda humana não serve para absolutamente nada. 


Este "nada" e esta "inutilidade", senhores e senhoras, é o maior insulto! Ao dizer: "você come merda?" Estamos dizendo biológicamente: você come o resto dos restos da digestão que é desprovida de qualquer utilidade. Ou dizer: "você é um merda!", significa algo ainda pior. 


Aos questionadores que não compraram esta ideia, poderíamos apelar para uma abordagem mais existencial. Se um sujeito que possui habilidades em algumas áreas de sua vida e se julga atribuído de qualidades é chamado de um merda, logo, é questionado em sua identidade social toda essa variável de atribuições qualitativas. Dizer ou julgar alguém como "um merda" significa dizer que ele não serve para nada, não tem nenhum sentido para estar vivo, não agrega nenhum tipo de valor a nenhuma sociedade. 


Pensando de forma fria, isto é um insulto significativo, seja ao que ou a quem for direcionado.  Enxergar o significado das expressões para além do nível mais básico é um sinal de ganho de consciência. E a consciência é a recompensa temporária para o ser que sabe que um dia irá morrer, tendo ao menos, iluminado um canto a mais da escuridão que ronda a pequena vela acesa na escuridão do absurdo da existência.


-Gabriel Meiller

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Reflexão em cima da imagem de Neymar




Uma das facilidades do mundo globalizado e suas plataformas de streaming é o variado cardápio de filmes, séries, documentários e até jogos que elas nos fornecem. Basta termos um mínimo de tempo disponível, uma assinatura e muita curiosidade.


Entretanto, a acurácia das análises fica sob o julgamento dos espíritos mais críticos e analíticos que não deixam de aproveitar o lazer  juntamente com a reflexão livre. Em uma onda de documentários que falam sobre personalidades midiáticas, o documentário do Neymar Júnior alcança uma posição entre os top 10 do Netflix. 

 

Em resumo o documentário mostra a vida de Neymar no mundo do futebol; o tal do "white people problem" que não está no cotidiano de indivíduos de classes mais baixas está presente na vida pessoal e profissional de Neymar Jr. Embora o próprio Neymar Júnior tenha "crescido em uma manjedoura", sua vida depois da maturidade não seria mais a mesma. O garoto pobre que morava em Praia Grande já ganhava uma melhor qualidade de vida, após se destacar no futebol brasileiro. Sob o estigma de um garoto habilidoso e mimado, a chuva de jornalistas e comentaristas do futebol virou bordão. Os comentarios giravam em torno de afirmações como: "Estão criando um monstro! ". 


Quem é este monstro?  Apenas um moleque que ganha superpoderes no mundo da bola, sob a promessa de ser um dos melhores do mundo e que age de acordo com sua maturidade e juventude suprimida por obrigações profissionais e ainda deseja curtir a vida, participar de festas e ser quem desconfia que é. Este é o "monstro" achincalhado pelos marmanjos experientes do mundo midiático, sem sensibilidade para detectar no jogador os traços de um jovem normal com aspirações que transcendem obrigações futebolísticas. 


Raiva, deboche, ousadia, precipitação travestida de convicções corajosas... este é um misto de caracteres que habitaram Neymar Júnior em sua carreira astronômica no mundo da bola. O que dizer disto tudo? O acaso jogou em um moleque fama, dinheiro e influências quase infinitas do tamanho do mundo. O poder subiu à cabeça daquele adolescente humilde que jogava bola na rua. O que é lógico de se ocorrer? Ingerências existenciais, é claro. O capitalismo engoliu e se apossou da imagem de Neymar Jr; não da pessoa de Neymar, mas de sua representação para o mundo. Chuvas de comerciais na televisão foram adornadas com notíciais midiáticas da vida privada de um dos jogadores mais bem pagos no cenário internacional. 


Neymar Jr foi midiatizado, cristalizado e empossado pelo poder que o vínculo de sua imagem gerou para os grandes empresários e suas marcas. Enquanto isso, no cenário futebolístico, Neymar toma a decisão de sair do Barcelona, visto que Messi estava nas capas dos jornais como a estrela principal do clube. 


O ego inflado do jogador e sua imagem imensa não poderiam suportar tal golpe desferido pela imprensa espanhola. Sua recisão com o clube espanhol, contrariando o clube e o seu pai Neymar (sênior), vão fazer com que a pressão por jogar no Paris Saint Germain seja avassaladora. Vaias dos torcedores recentidos, junto com a pressão para que o primeiro título saia, somada a uma lesão em Neymar, fazem com que o jogador se revolte e chegue ao ponto de agredir um torcedor impertinente. 


Ao final, embora o Paris Saint-Germain tenha perdido a final do campeonato, Neymar se supera e joga de forma fenomenal depois de se recuperar da lesão.  Entende-se que Neymar é um misto de sentimentos no imaginário coletivo. Que sua luta pessoal e coletiva se esbarram entre as filmagens do documentário e que muitos viéses e análises podem ser retiradas nos mais diferentes níveis existenciais, sociais, políticos e econômicos. 


Acima de tudo, a imagem de Neymar é mais uma peça no quebra cabeça da sociedade pós-contemporânea que está sempre em busca de otimização, positividade (tóxica), representação advinda de status de personalidades carismáticas, entre outras características. O capitalismo, entretanto, é um sistema que abarca tudo isto e que está em tudo e todos! Fazendo o bem e o mau; a reparação histórica e a injustiça; a acumulação e a miséria a céu aberto marcada pela ausência de recursos. O capitalismo é o grande Deus supremo no tecido social que se apodera da imagem de pessoas em um pacto sagaz e sutil. 


É impossível colher somente o doce néctar do capitalismo sem também estar disposto a sofrer de seu veneno. E o garoto habilidoso que cresceu jogando bola na parte periférica de Praia Grande, se tornou o jogador mais caro da França sob a missão de cumprir o que o clube lhe designou. Em resumo, o capitalismo é uma extensão do grande surto coletivo em qual a humanidade está inserida por causa de sua primordial ganância que afeta tudo e a todos, sem discriminação de classes sociais.


-Gabriel Meiller

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Examine-se o homem a si mesmo, e então coma do pão e beba do cálice

 

 






Existem pessoas que na vida vão a esbarrar aqui e acolá; tateiam em busca de descobertas sobre o que há de significante e aprazível a deleitar-se. Alguns terminam tal caminhada existencial revestidos de uma carcaça pobre, resultante de nadismos e automatismos que foram a viver em tal monótono tempo de vida. Que foram a fazer estes? O padrão; nasceram, cresceram, se preocuparam com os aspectos basilares de suas épocas, como se aliar a um grupo social, emprego, corridas exaustivas atrás de promoções e especializações deste emprego; casar e ter filhos; ou idas frequentes em baladas e eventos semanais; o consumo de séries e filmes; a aposentadoria, a dedicação em cuidar dos netos e em arrumar a casa... e então aquele velho sentimento de um carro velho na garagem! Uma peça que já cumpriu seu tempo e sua função aqui na Terra e resta-lhe agora o túmulo e o fim da consciência.  


É isto? Isto é vida? Viver ou existir? Por deveras medíocre foi tal vida estapafúrdia, alienada no fluxo do famoso "vá vivendo (vá a viver)  vá seguindo (vá a seguir), pois um dia a felicidade chega!" O anestesiamento e o comodismo enterraram tal indivíduo antes do devido tempo e dentro deste havia somente um sepulcro caiado; um engenhoso Frankeinstein. 


Óh, Sísifo! Condenado a empurrar tal pedra estafante até o mais alto cúme para que ela role novamente! 


Que fazer? "A necessidade aguça o engenho..." como diriam meus colegas lusitanos! E então um de seus mais sublimes poetas, exaltado pelo ufanismo lusitano, Fernando Pessoa, nos diz: 


"Não importa se a estação do ano muda... Se o século vira, se o milênio é outro, se a idade aumenta... Conserva a vontade de viver, não se chega a parte alguma sem ela." 


E então o Frankeinstein acorda de seu mais profundo sono; e aqueles sábios que ouvem a voz da revolta contra o absurdo e abrem a porta de suas almas, são revestidos da glória do autosentido da vida. 


E então ela vai a encontrar (encontrando), esta vagante alma, o que a energiza; o que a dá sentido a ponto de cumprir-se a profecia do Eterno retorno do confesso amante da vida. 


Seria o hedonismo para alguns a libertação do absurdo? Uma vida de incansável estimulação dos prazeres? Que assim examine cada um em seu coração e tome deste cálice! 


Seria a tremenda privação e dedicação assídua a alguma causa religiosa ou quase religiosa (como demonstrou o marxismo/comunismo, incumbido de libertar os escravos do capital e guiá-los à terra prometida da igualdade? Ou o fetichismo da meritocracia e da autoregulação do mercado que os liberais econômicos sonharam ?) Que assim examinem em seus corações os devotos de cada causa religiosa, ou semirreligiosa... e bebam desse cálice! 


Seria a profunda revolta niilista (seja qual for o sentido do niilismo), principalmente o niilismo de negar que qualquer verdade possa ser alcançada?


Deste cálice assim beba, tal ser vivente!


Seria a tentativa incansável, por meio da filosofia racionalista, da tão sonhada busca da Verdade? Verdades acessíveis integralmente à faculdade da razão? Arre... já ouço Friedrich Nietzsche revirando-se em seu túmulo! Embora este jogo de brincar de atingir a onisciência seja seduzente aos amantes da filosofia. 

Que também, estes, bebam de seu cálice! 


Seria, então, a tentativa de viver o ideal nietzschiano? De não adotar nenhum aparente ídolo de nenhuma espécie? APARENTE, pois o próprio Nietzsche ergueu seus altares aos gregos e sua cultura suprema. Viver a vida de forma estética e com o mais profundo gosto, abraçando o sofrimento e se fortalecendo deste? 


Quem assim pensa e compactua, que erga seu cálice e o beba com gosto! O cálice de Dionísio! 


 

Portanto, caros irmãos e companheiros de jugo existencial, qual for a decisão e percurso existencial de todos os espíritos filhos de seu tempo... que seja esta decisão examinada em tais corações e, no final, beba cada um de seu glorioso cálice! Para que no final, ao acabar a ceia da vida, a morte possa consumar este momento que deva ser eterno, enquanto dura! 


E assim a Morte pergunta ao peregrino caminhante: "Valeu a pena?" E ele dirá: "tudo vale a pena se a alma não é pequena!" Mesmo que as embarcações tenham naufragado e os filhos chorado; mesmo que as mães tenham em vão rezado e as noivas tenham ficado por casar! Pois os portugueses estavam dispostos a navegar o mar do desconhecido... e roubar o ouro e os recursos destas terras aqui de onde falo! A terem cruzado o bravo Atlântico com seus navios negreiros, cheios de escravizados africanos, pelos quais as tribos africanas rivais se vendiam ao aventureiro lusitano em troca de escambos. Mesmo assim valeu-lhes a pena, pois mesmo o jugo do capricho e do crime (que seja este punido pela parcial justiça dos homens) faz parte da vocação da vida!  Sim, os erros! Fazem eles parte da vocação de uma vida mais que vivida! 


-Gabriel Meiller

Esvaziamento dos sentidos existenciais modernos

 



Em toda mesa de cabeceira de um ser humano pós-moderno existem catálogos de manuais sobre: como se deve viver, o que almejar, como se comportar e o que esperar da vida. Em um primeiro momento o serzinho ingênuo e iludido se felizarda com tal engenhosidade da contemporaneidade e entra em um descanso sabático existencial. 


Dois empregos? Uma vida de hobbies, baladas regadas a alterações de consciência, carro importado ou nacional? Férias na Disney? Formação em direito, engenharia ou medicina? Viver de música e da arte? 


O ser humano nasceu para adorar a Deus ou Deuses? O ser humano reencarna em outras existências? O ser humano é um sopro que logo se esvai e só resta a eterna escuridão e o fim da consciência?


Ser liberal ou conservador? Usar drogas ou viver pelas leis e regras morais? Ficar com vários ou namorar? Seguir alguma religião ou viver sem elas?


Para todas estas e outras perguntas existem mostruários de roupas existenciais, pensamentos e modos de ser. Diante destes mostruários cada mortal veste uma roupa e logo depois descarta; outros se identificam e não mais as trocam. 


Mas atenção, muita atenção: o vendedor é um manipulador pertinente! Ele sugere peças de roupas por meio de artifícios engenhosos. As propagandas na mídia, os grupos sociais fechados, os influencers do youtube, a grande mídia... são o vendedor desenfreado. Mas acima de tudo: o surto coletivo da sociedade da positividade tóxica. "Produza, seja, faça, viva, escolha, exista!" De onde vem tudo isso??? Maldito Dasman! Maldita normatização!  


E neste discurso a megalomania do homem da produtividade se torna um imperativo mais que categórico que escraviza o portador do manual na mesa de cabeceira.


"Como assim você não sabe o que quer? Tenho mil e uma opções para que você seja... ande logo! Se vista e diga o que achou!" 


E assim o ser humano sai do mostruário pressionado, insatisfeito e em dúvida sobre o que escolheu! "Será que essa peça me serve mesmo? É a mais adequada?" 


E então o vazio bate à porta... cresce de maneira avassaladora; as frustrações vêem à tona; o sentimento de confusão e de que não se sabe o que quer é crescente e profundo! Quem somos? Somos por que quisemos ou por que fomos coergidos a ser? 


A construção do sentido da vida é pessoal e subjetiva, mesmo que em meio à exposição ao objetivo e ao coletivo-social. O ser que escolhe abandonar o manual da mesa de cabeceira, expulsar o vendedor apressado e manipulador, e averiguar, vestir, trocar, desfilar e usar o mostruário um a um... sai com a certeza (mesmo que ilusória) de que escolheu seus melhores looks. 


Ah... a segurança de que a bendita "escolha certa" foi feita! Nada paga o preço desta sensação aconchegante; nada rouba a felicidade de uma vida bem vivida e saboreada pelos sentidos.  


-Gabriel Meiller

O Gênesis científico


 



No princípio a Terra era sem forma e vazia... até que pela ação do tempo biológico e de bilhares de anos, a vida surgiu no mais profundo abismo: o abismo do oceano. É quase certo que não havia um ente que pairava sob a face das águas, tendo em vista que o famoso "haja luz" e "o Espírito de Deus pairava sob a face das águas..." é uma linguagem mitológica muito bem formulada na antiguidade sob a finalidade de explicar em uma linguagem infantil (pois a antiguidade é o jardim de infância da humanidade) a origem do mundo e da vida na Terra. 


A mitologia hebraica, formidável em riqueza de detalhes visto que foi aculturada da tradição de diversos outros povos, a saber: egípcios e babilônios primordialmente... é um dos trunfos da linguagem mítica e simbólica. 


Embora o mítico seja primordial para a base e a continuação da evolução do pensamento humano, voltemos para o ponto central da narrativa: a vida nasceu das profundezas do Oceano. E variando por inúmeros microorganismos que se refinaram e se desenvolveram de forma pluricelular... um descendente que saiu de um ramo de uma espécie ancestral aquática em comum, aquele que migrou da água para a Terra, deu início à jornada terrestre das espécies. 


Das variadas espécies terrestres, entre os inúmeros mamíferos que percorriam o caminho sinuoso que levou até os primatas e ancestrais humanos... adveio o homo sapiens. Este é, como diria Carl Sagan  (este cultivador do arquétipo apolíneo e da racionalidade platônica), a parte do universo que resolveu conhecer a si mesmo. O homem é o universo que se autoconhece! 


"Vida inteligente? Prazer, sou o homo sapiens!"  Demonstrou esta espécie tão contraditória e absurda; sim, somos inteligentes por inúmeros feitos incontáveis espalhados pela história. Entretanto, ainda permanecemos burros por cairmos nos encantos da ganância coletiva da espécie. Ora... se a evolução traumatizou o homo sapiens a sempre buscar o acúmulo como uma tentativa de se prevenir contra a escassez e o inesperado... esta foi a sua grande ironia. 


Mas se a ganância e o fetiche pelo acúmulo desmedido possui fortes raízes na construção social da natureza do homo sapiens... então esta é a espécie mais digna de investigações que a história já sonhou. Afinal, os predadores que são o topo da cadeia alimentar estão exaurindo o planeta e as suas demais espécies através da ganância e deste instinto caprichoso. 


Que mais dizer? a mãe -Terra que os gerou se incumbirá de vomitá-los como um ninho de ratos dispersado e esmagado pelo pneu de uma Picape 4x4 veloz. A natureza, ou melhor, o planeta Terra se autorecicla através de macroprocessos. E as impurezas são removidas e jogadas para longe; assim fará a fúria da mãe-Terra, quando vingar seus filhos irracionais e sua vida que foi devorada pelos animais fantásticos, aqueles mestres da finalidade arrastados pela ganância! 


Naquele dia, revela a sagrada mãe-Terra, vocês colherão de forma fatal e irreparável as suas ações imperialistas. O dia do julgamento revelará o talhamento do animal fantástico e sua pior sina. As catástrofes serão o expurgo e os sinais do começo do fim. 


-Gabriel Meiller

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

O que a tragédia grega e sua interpretação nietzschiana nos ensina de forma prática!






Não é novidade ou assombro para nenhum de nossos neófitos em Nietzsche, talvez para alguns ainda em fase deveras iniciática, de que o filósofo alemão admirava e extraia sua filosofia dos antigos gregos. Não somente dos antigos gregos, mas da antiga tragédia grega do período clássico. Ésquilo e Sófocles foram as principais inspirações na qual Friedrich Nietzsche se inspirou e contemplou o tão comentado Nascimento da Tragédia grega, que se transformou no nome de seu primeiro trunfo: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. 


A quem Nietzsche contemplava nestas tragédias e mitologias gregas? Os deuses gregos, bem como os heróis trágicos e os seres místicos. 


Sob a perspectiva de que o mundo helênico se contemplava, como em um espelho, através dos seus mitos e dos deuses olímpicos: orgulhosos, caprichosos, guerreiros, vingativos, sábios, impetuosos, belos, exóticos, fortes, sensuais, divertidos e felizes; tristes e sérios, enfim: deuses antropomórficos! Sob esta perspectiva os gregos se baseavam e mostravam quem eram: um povo guerreiro e engenhoso, cultuador da vida e da harmonia estética, equilibrada pelos pressupostos dionisíacos e apolíneos.


Ao olhar para este suprassumo da Vontade, o filósofo reprimido e aprisionado em sua juventude pelos dogmas do cristianismo e por uma vida abarcada pela rejeição da figura materna e pela ausência paterna, encontra um verdadeiro refúgio no oásis da mentalidade greco-romana e guerreira em essência. 


Por que o adjetivo guerreiro é importante para Nietzsche e a compreensão de sua filosofia? Porque o guerreiro é o arquétipo que lhe coube em sua vida trágica, semelhante à tragédia grega. 


O guerreiro é quem lida com o sofrimento existencial, isto é: a divergência entre as expectativas de que determinadas situações acontecessem de uma determinada forma e a realidade que ocorre de uma forma totalmente diferente da expectada. 


Na tragédia grega o final feliz é abolido; os heróis são "heróis trágicos" pois o destino, isto é, os acontecimentos que transcendem o controle dos personagens, é carrasco e supremo sobre a vida deles. O final ocorre sempre de forma trágica, isto é, contra a vontade dos personagens da tragédia grega. 


Existe alguma possível semelhança com a vida pessoal do filósofo germânico? Ou melhor, com as nossas vidas? Claramente. Pois a tragédia não discrimina nenhum ente sofredor por sua etnia, classe social ou nível intelectual. 


Entretanto, apesar da tragédia ser um tema em que nos identificamos em muitos momentos da vida, ela possui um caráter mister: o aspecto redentor! 


Redenção? O que há de redentor na tragédia e no escárnio da vida humana em bancarrota? Para o falido que sofre o imputamento do inesperado e do trágico, nada há de redentor. Mas para o observador atento, independente das épocas, a tragédia é um ensinamento de amor fati, ou seja, amor ao destino. 


Como o personagem Jó, porventura, disse por meio dos hebraicos após sofrer uma série de tragédias e ser impelido por sua mulher a amaldiçoar a divindade: 


" 'Você fala como uma insensata. Aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal?'  Em tudo isso Jó não pecou com os lábios. "


Em suma, a lição das tragédias e relatos sobre o trágico mostram que da vida e do destino devemos abraçar tanto o sofrimento, quanto o deleite. O bom e o ruim; o aparentemente justo e o injusto, pois o destino e a fatalidade são senhores sobre nossa vontade. E quando abraçamos o sofrimento inevitável e este não nos mata, certamente somos fortalecidos. Recalcitrar aos grilhões do sofrimento inevitável significa gastar energia em vão e perder a oportunidade de viver a vida de forma plena, ou seja: de forma humana, demasiada humana. Navegando para além da dualidade entre o bem e o mal, entre o bom e o ruim. 


-Gabriel Meiller